Desembargador detona projeto Moro: 'Ultrapassado, mal redigido, com propostas contra a Constituição. O Brasil merece mais e melhor'

Moro e seu projeto

O desembargador Alfredo Attié Junior, do Tribunal de Justiça de São Paulo, é presidente da Academia Paulista de Direito (APD). Ele escreveu artigo, publicado no blog do Frederico Vasconcelos na Folha, detonando todos os aspectos do projeto que o ministro da Justiça Sergio Moro apresentou com a intenção declarada de melhorar a segurança pública do país, mas que, na verdade, deu forma a uma manifestação de campanha do presidente (eleito mediante fraude) Jair Bolsonaro de dar licença para matar a policiais e milicianos (no projeto de Moro até os machistas que cometam feminicídio são contemplados, com a tradicional desculpa de "violenta emoção" para o assassinato).

O desembargador não vê nada de positivo no projeto, em nenhum aspecto. Não tem profundidade, não tem fundamentação jurídica, é ultrapassado, mal redigido e mal formulado, além de antidemocrático e antidireitos humanos.

Na íntegra:

1. As medidas apresentadas pelo Ministro da Justiça e da Segurança são fruto lamentavelmente de pouca experiência e de lacunas de formação jurídica.
Não se pode evidentemente exigir de um juiz conhecimentos de técnica legislativa, ou seja, que tenha capacidade de redigir leis, mas toda pessoa que assume uma função pública tão relevante quanto a de Ministro de Estado deve-se fazer cercar de pessoas que possam suprir eventuais deficiências, assim como ter a curiosidade intelectual e a sabedoria de compreender que exercer uma função pública é passar a conformar opiniões pessoais a uma apreciação realista e objetiva daquilo que se chama vontade geral, expressa não no clamor público, mas no sistema jurídico, assim nas leis, encimadas pela Constituição.
A par disso, lamentavelmente, as medidas apresentadas estão mal redigidas, com erros graves no uso da língua portuguesa, que embaraçam a interpretação, e erros relativos a termos e a conceitos jurídicos.
Há ainda um aparente preconceito com relação aos juristas que exercem as várias profissões jurídicas, inclusive contra juízes e juízas uma certa desconfiança, que aparece nitidamente nos detalhes das medidas, nos quais se busca entrar em minúcias, para tolher a capacidade de aplicação racional do direito.
2. A proposta de 34 páginas prevê mudanças legislativas. Falta, portanto, não apenas uma visão de conjunto do direito penal brasileiro e internacional, mas sobretudo a compreensão do que significa pensar reformas e medidas para a alteração, mesmo que simples e objetiva, da ordem jurídica.
Isso significa que a proposta já nasce ultrapassada. De há muito não se pensa mais que para a realização de determinados fins (combate à corrupção, ao crime organizado, ao crime violento, nomeadamente) mudanças legislativas sejam eficazes e eficientes.
Pelo contrário, cabe ao Poder Público o desenho e a execução coordenada de políticas públicas. Apresentar projetos de lei não é suficiente. Esses projetos devem aparecer no bojo de um projeto maior, que especifique ações e políticas, com a organização de estruturas e a indicação de tarefas a serem realizadas por órgãos públicos, com a participação e a colaboração de estruturas já existentes na sociedade.
3. Quanto às medidas propriamente ditas, há falta de sistematização, mas sobretudo elas não compõem, como pretendido, um anteprojeto de lei. Especificamente, há grande dissimilitude entre cada um dos dispositivos apresentados.
Alguns dispositivos parecem prontos para início, muito rudimentar, aliás, de tramitação como projeto de lei. Mas a maioria deles se apresenta apenas como uma ideia, uma opinião, um acho-que nisso ou naquilo se deve fazer isso ou aquilo, mudar, modernizar, etc.
Isto é, não há uma maturidade de proposta que permita chamar as medidas de anteprojeto de lei, muito menos que permita que sejam apreciadas como se um só anteprojeto fosse.
Qualquer jurista, no seu trabalho cotidiano, pode ter ideias mais ou menos completas de mudanças legislativas (o que se denomina reflexão de lege ferenda) que facilitariam, se fossem realizadas, o exercício de sua atividade específica. Mas isso não significa, de maneira nenhuma, que se tenha, a partir daí, um projeto de lei.
Essas opiniões devem ser cotejadas com a de outros juristas, que exerçam a mesma ou outras atividades, correlatas ou não, que exerçam o mesmo ou diferentes papéis relativamente ao mesmo tema, ou a outros temas, à mesma ou a outras áreas.
Não apenas isso, é preciso essencialmente saber de que forma essas propostas se coadunam com o sistema jurídico, ou de que modo se devem inserir nele, de tal sorte a gerarem, pelo menos, a consecução das expectativas pretendidas.
Por outro lado, e não menos importante, é preciso essencialmente saber se essas propostas, de um grupo ou individuais, oriundas de influências locais ou de cópias de legislações estrangeiras, de leituras fragmentárias, correspondem a anseios democráticos, ou se se apresentam apenas como palavras de ordem irrefletidas, que funcionam apenas como apelos populistas e tentações autoritárias.
4. Enfim, são apenas breves e iniciais reflexões. Há medidas que parecem interessantes para o debate e que merecem aprimoramento para se tornarem efetivamente mudanças legislativas – desde que acompanhadas por políticas públicas eficientes.
De maneira geral, há consciência de que existe necessidade de atualizar nossa legislação, sobretudo para o enfrentamento do chamado crime organizado. Isso é ponto positivo. Mas se trata apenas de uma intenção, sendo os termos das medidas muito rudimentares.
Há problemas sérios, relativamente a artigos de constitucionalidade duvidosa ou de enfrentamento puro e simples de inconstitucionalidades. Ou seja, propostas contra a Constituição, que demandariam, em princípio e de boa intenção, que se explicitasse uma proposta de mudança constitucional, por meio de Emenda, se não se tratar de alteração inconstitucional de cláusula pétrea.
Finalmente, não há qualquer medida nem artigo que se estabeleça contra a criminalidade violenta, muito menos para trazer solução à violência presente na sociedade brasileira.
Pelo contrário, o detalhamento do instituto da legítima defesa, na verdade, tenta – com uma desconfiança lamentável com relação ao trabalho tão importante desempenhado pelos juristas e pelo Judiciário brasileiro – legitimar isso sim a violência policial, um dos graves problemas vividos em nosso País, já objeto, inclusive, de condenações no sistema regional de proteção aos direitos humanos.
5. Não digo que o anteprojeto é antidemocrático nem anti-direitos humanos, pois isso seria uma afirmação verdadeira, muito embora genérica, que alimentaria apenas um debate raso e daria mais espaço àqueles que têm dado asas a seu preconceito e ao ódio, destruidores dos liames que uma sociedade democrática deve cultivar entre seu povo – igual, livre, solidário.
6. O certo seria constituir uma ou mais comissões de juristas e outros profissionais, ouvir organismos da sociedade que já trabalham com os temas referidos no anteprojeto, enfim, preparar uma proposta que sejam de fato resultado da experiência e de estudo de boas práticas, apta a tramitar no Congresso e a receber propostas e a fiscalização da sociedade.
O Estado não se deve distanciar da sociedade. O Ministério da Justiça e da Segurança não se deve isolar da justiça e da segurança, que se perfazem em acolher e criar uma sociedade solidária e coesa, em torno de deveres e direitos humanos.
O Brasil merece mais e melhor.


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