Mais que dados, o que as Big Techs nos roubam é nossa atenção, nosso tempo —e ele não volta mais


Numa entrevista a Casey Schwartz, publicada no The New York Times, traduzida aqui pelo Globo, o escritor e jornalista escocês Johann Hari fala sobre o roubo de nossa atenção, nosso foco e nosso tempo pelas Big Techs e a dificuldade em nos livrarmos do problema.

O típico trabalhador americano se concentra em uma determinada tarefa por apenas três minutos. Em média, cada dia nós tocamos ou verificamos nossos celulares mais de 2 mil vezes, e gastamos mais de três horas olhando para eles. É o que diz Johann Hari, autor que já escreveu sobre depressão e vício, em seu novo livro, “Stolen focus” (“Foco roubado”, ainda sem tradução no Brasil). A obra é uma investigação sobre como chegamos a esse estado de distração — que Hari descreve como uma “crise de atenção”.

Alguns fatores que Hari identifica parecem claros, como o atual modelo de negócios das grandes empresas de tecnologia, que geram dinheiro na proporção direta da atenção que as pessoas dão a elas. Outros fatores que ele desenterra são menos discutidos, desde o que comemos (alimentos altamente processados, cheios de carboidratos refinados) e como dormimos (segundo alguns relatos, menos do que costumávamos) até a natureza da infância americana, com sua perda generalizada de autonomia. Leia os principais trechos da entrevista.

Você vê uma conexão entre os tópicos de seus três livros: depressão, vício e atenção?

Sempre há um mistério na minha cabeça que eu realmente quero investigar. Com este livro, pude sentir minha própria atenção ficando pior. Coisas que exigiam foco profundo, que eram essenciais para o meu senso de identidade, como ler livros e ter conversas densas, estavam ficando cada vez mais como descer uma escada rolante. Eu ainda podia fazê-los, mas eles estavam ficando mais difíceis. E eu podia ver isso acontecendo com a maioria das pessoas que eu conhecia.

Como a pandemia nos últimos dois anos contribuiu para a nossa perda de foco?

Ela nos deixou mais estressados, e sabemos que o estresse desencadeia um estado chamado de vigilância — quando você acha mais difícil se concentrar porque seu cérebro está examinando o horizonte em busca de perigo. A outra coisa é que a pandemia nos deu essa visão distópica do futuro. Naomi Klein argumenta que, de repente, fomos empurrados para onde estaríamos em 15 anos em relação à tecnologia. Ela nos mostrou uma visão do futuro que muitos de nós odiamos. É o futuro para o qual estamos nos movendo e que agora podemos escolher conscientemente abandonar e seguir em direção a um futuro muito melhor.

Há aqueles que dizem que precisamos ser responsáveis individualmente por nossa disciplina em relação ao tempo de tela, em vez de culpar a tecnologia. Você chamou isso de ‘otimismo cruel’: uma solução que parece boa, mas não funciona.

No início da pesquisa para o livro, eu tinha essencialmente duas linhas sobre o que havia acontecido comigo. Eu pensei: “Você está sem força de vontade. E, depois, alguém inventou o smartphone.” Decidi exercer minha força de vontade e fiquei três meses sem meu celular. Passei três meses em Provincetown, uma vila em Massachusetts, completamente offline, em um ato radical. Houve muitos altos e baixos, mas fiquei surpreso com o quanto minha atenção voltou. Eu era capaz de ler livros oito horas por dia. No final do meu tempo por lá, eu pensei: “Eu nunca vou voltar a ser como eu vivia antes”. Os prazeres do foco são muito maiores do que as recompensas de curtidas e retuítes.

Então peguei meu telefone de volta e, em poucos meses, estava 80% igual. Só entendi realmente por que quando entrevistei James Williams, que eu diria ser o principal filósofo em atenção no mundo agora, e ele me disse: “É como se você pensasse que a solução para a poluição do ar era você pessoalmente usar uma máscara de gás".

Não sou contra máscaras de gás. As máscaras de gás são ótimas. Mas elas não são a solução para a poluição do ar.

Se abandonar a tecnologia temporariamente não é a resposta, quais técnicas considerou eficazes?

Eu durmo mais, pelo menos oito horas. Eu tenho um recipiente trancado por bloqueio de tempo, no qual guardo meu telefone por quatro horas, quando escrevo. E eu não sento e assisto a um filme com meu namorado a menos que nós dois bloqueemos nossos celulares.

Há pessoas que argumentam que se preocupar com a influência das grandes empresas de tecnologia em nossa atenção é apenas o novo pânico moral. Como você vê esse argumento?

Eu costumava acreditar que era este o caso. Mas acho que as evidências são realmente esmagadoras, e a maioria das pessoas pode ver. Também é urgente porque muitos dos fatores que estão invadindo nossa atenção estão prestes a acelerar enormemente. Pense em quanto o TikTok é mais viciante do que o Facebook. Tem que haver um movimento do outro lado, de todos nós, em dizer: “Não, você não pode fazer isso com a gente. Queremos ter uma vida onde possamos pensar profundamente, ler livros e na qual nossos filhos possam conversar”.

Cerca de seis milhões de crianças americanas foram diagnosticadas com TDAH. Mas não há consenso sobre se o transtorno é uma “doença estritamente biológica”.

De todos os tópicos do livro, este foi o que mais os cientistas que eu entrevistei discordaram. As evidências são muito claras de que existem algumas pessoas cujos genes as tornam um pouco mais vulneráveis a problemas de atenção. No entanto, a extensão em que esses problemas de atenção são causados pela biologia tem sido um tanto exagerada. Esta é a primeira sociedade humana que tentou fazer com que as crianças ficassem quietas durante oito horas por dia. Ninguém nunca fez isso antes porque é uma coisa absolutamente idiota de se fazer.

Então, acho que o diagnóstico de TDAH pode ser bom porque diz às crianças: “Isso não é culpa sua”. Mas acho que é prejudicial dar a eles uma história exclusivamente biológica, dizendo: “Isso é apenas um problema no seu cérebro”.

Sua solução para tudo isso é iniciar uma 'rebelião de atenção'. O que seria isso?

O primeiro passo é o aumento da conscientização. É todo mundo se reunindo e dizendo: “Você acha que está falhando porque não consegue se concentrar, mas na verdade isso está acontecendo com todos nós e está acontecendo por grandes razões estruturais”.

 

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