'O jornalismo como conhecemos morreu' — Janio de Freitas

O jornalismo morreu. Viva o jornalismo

Em depoimento a Claudio Fernandez e João Pedro Faro no site Inteligência Insight, o jornalista Janio de Freitas comenta a morte do jornalismo e outros assuntos relacionados à crise da mídia tradicional no mundo.

UMA CÓPIA DO JORNALISMO IMPRESSO

Até agora, o jornalismo de internet não criou nada que pode ser chamado “o jornalismo de internet”. Até pela apresentação das páginas iniciais de um site, é possível perceber a cópia do jornalismo impresso. As diagramações dos veículos online, em sua essência, são muito parecidas com o jornalismo impresso: o uso de imagem, fotografia, os blocos, os títulos, quase tudo exatamente como é no jornal. A tendência, ao menos espero, é que eles venham a encontrar suas próprias criações, como aconteceu com o jornalismo impresso. Eu vivi essa experiência na reforma jornalística e gráfica do Jornal do Brasil, em 1959, e, anos depois, no Correio da Manhã, quando fizemos algo semelhante. Muito provavelmente essas experiências que eu tive se repetirão na internet, na mídia digital, em número até maior do que ocorreu no impresso.

No caso do Jornal do Brasil, criamos um modelo de noticiário, com textos alinhados por tamanho, páginas sem fios, enfim uma diagramação quase gestáltica. Entre outras mudanças, o próprio cabeçalho com o título Jornal do Brasil não era fixo, até então um padrão da imprensa. A logomarca do jornal se movimentava e mudava de posição na primeira página, ora de um lado, ora de outro, às vezes no meio da página. Eu queria que o leitor chegasse na banca e não dependesse de olhar a logo marca para identificar o jornal. Nossa pretensão era de que ele batesse o olho na primeira página e dissesse “Esse aqui é o Jornal do Brasil”. Ou seja: ele saberia por uma captação automática, sensorial. Há incontáveis outros exemplos na mídia internacional. Nos Estados Unidos, a Life mudou a cara inteira da revista na década de 30. Na França, a Paris Match transformou completamente a técnica de revista ilustrada, de maneira fantástica e corajosa. Em algum momento, essas mudanças também terão de ocorrer na internet. A tendência é que esse meio encontre a sua própria forma e deixe de ser uma réplica visual da mídia impressa.

A MANUTENÇÃO DO STATUS QUO

Há uma resistência à mudança no próprio meio. Isso existiu no impresso e se repete na internet. Essa resistência está nos jornalistas, que vão ter de aprender uma coisa nova e terão muito mais trabalho no início até as coisas engrenarem perfeitamente. Eu percebo essa resistência em detalhes mínimos, como, por exemplo, em certos formalismos na menção a nomes de instituições. Ter de escrever Supremo Tribunal Federal por extenso fica até ridículo. Os leitores sabem o que é Supremo. Sabem que Jair Bolsonaro é ex-presidente. Não é necessário apresentá- -lo sempre como ex-presidente. É uma cópia dos manuais de redação, que já são velhíssimos. São vícios que tornam os jornais e agora as publicações na internet muito chatos. E não pensem que o leitor não percebe isso não! E quando não percebe, há uma coisa ainda pior: ele sente! Há uma retração sensorial, intelectual. O público se afasta e o jornalismo não consegue encontrar soluções. Os jornais deveriam estar hoje nas mãos de profissionais interessados e dedicados a estudar o jornalismo e refletir sobre fórmulas, saídas para os nós da atividade. Eles seriam ou deveriam ser os recriadores do jornalismo. No caso das redações, há uma explicação pouco singela para essa resistência à mudança. A maior parte das redações tem sido preenchida em seus cargos por pessoas que se conduzem nos seus postos para preservar o salário. O salário de redator para baixo voltou a ser muito reduzido, mas a remuneração dos comandos das redações é muito alta. A preocupação em manter esse status quo virou prioridade, o que traz um efeito nocivo ao jornalismo. O comando da redação se torna um cumpridor e transferidor de ordens não provenientes do jornalismo, mas dos interesses que margeiam e se valem do jornalismo. E há também a resistência ao novo por parte do que deveriam ser os maiores interessados em mudar, os donos de jornais, cujas publicações estão entrando em colapso. Do ponto de vista da leitura, da audiência, do consumo, a empresas de mídia já perderam espaço e importância. Outros meios ocuparam esse lugar. O que ainda sobrevive é o seu poder. Por ora, ele não se esvaiu com a extinção das revistas e de tantos jornais. Mas quem usufrui disso é necessariamente um número menor, correspondente ao que sobrou no setor.

SÍNDROME DE WALL STREET JOURNAL

Há um fenômeno na imprensa brasileira que, de certa forma, vem desde o Plano Real: a ascensão do noticiário econômico. É uma inversão, porque é mundial a constatação de que o tema menos procurado pelo ouvinte, pelo leitor ou pelo telespectador é exatamente a economia. Nenhum outro é tão pouco interessante, merece tão pouca atenção. E os leitores – assim considerados porque são capazes de dizer se os juros deverão subir ou cair – são apenas leitores de títulos. A cota dos leitores de economia que leem alguns textos é ridícula, tão ridícula que chega a ser caricatural. E, na verdade, não é que o leitor não leia; ele simplesmente não entende o que está sendo publicado. Ainda assim, a frequência de manchetes de economia nos jornais brasileiros é de uma proporção sem paralelo no mundo inteiro! Essa fixação com a economia está nas próprias redações. Tem que fazer um comentário na TV ao meio-dia. Quem é que se escolhe? O jornalista de economia. Tem de fazer um caderno especial sobre água. Entregam ao editor de economia. A imprensa brasileira hoje tem complexo de Wall Street Journal. E essa primazia do noticiário econômico traz a reboque outro fenômeno maléfico: a cobertura jornalística de economia é praticamente ditada por uma corrente única de pensamento. A mídia reproduz e verbaliza a voz do mercado. Diz o que o mercado diz e, principalmente, o que ele quer ouvir, com baixa capacidade crítica e de interpretação dos fatos. E se grande parte da imprensa realça o que mercado quer, naturalmente esmaece o que ele não quer. Dou um exemplo: o BNDES realizou, em março, um seminário com economistas proeminentes no mundo. Gente que gostaríamos de ouvir em qualquer situação, e que os jornalistas usariam para transmitir aos seus leitores, com o maior empenho, com a maior satisfação. A maioria dos jornais deu um espaço ínfimo ao assunto; alguns sequer fizeram menção ao evento.

REGULAÇÃO DA MÍDIA

O trabalho coordenado dos jornais e televisões durante a Lava Jato foi uma salada de verdades e mentiras, e coisas sérias e canalhices. Eu acho que serve para todo o sempre como uma resposta a um tema que surge recorrentemente: a necessidade ou não de regulação da mídia. Ainda não saiu – e eu duvido que saia – uma história “no duro” sobre o que se passou e como eram feitos os noticiários daquela época. Fora quem viveu aquilo, ninguém sabe. É uma coisa horrorosa. Mesmo o tratamento dado a denúncias de acusações verdadeiras foi de uma imoralidade completa. Só possível, por falta total de regulação. Não é censura, são normas éticas. Eu acho necessário, mas é evidente que a gente precisa de uma regulação que seja inteligente. Então, vai depender da forma dada a essa regulação. Se for inteligente, honesta e correta, acho muito importante ter. Até porque hoje não estamos falando só das grandes empresas de mídias, estamos falando de todo esse ecossistema, da internet, dos novos veículos digitais, das redes sociais propagadoras de informação que não são produtores de conteúdo primário, mas replicam conteúdo de terceiros. Essas empresas estão à margem de qualquer regulação. Existe uma assimetria em relação às empresas de mídia, que, mesmo não reguladas, ainda respeitam, muitas delas, códigos éticos.

A ERA DO DESIMPORTANTE

A mídia se tornou especialista em transformar o irrelevante em relevante. Em dar importância ao que é desimportante. O supérfluo capturou as manchetes. Isso é parte fundamental da transformação e, mais do que a transformação, da perda de qualidade geral do jornalismo. Em uma sociedade tão numerosa e diversa como é a nossa, tem leitor para tudo, tem ouvinte para tudo, tem telespectador para tudo. Em última linha, há demanda para tudo. Existe, sim, um público que quer consumir o relevante. Só que ele é insuficiente. Uma parcela cada vez maior da sociedade quer o irrelevante. Há algo curioso nesse fenômeno: os jornalistas, pouco preparados para olhar a sociedade, o país, a realidade brasileira e o próprio jornalismo, percebem, dolorosamente, o que está se passando com o jornalismo. Eles identificam a queda brutal das assinaturas e da venda avulsa dos veículos impressos. Mais do que saber, o profissional sente que isso está acontecendo. Os comentaristas e articulistas, por exemplo, percebem a queda de repercussão do que dizem e escrevem. Mas parece haver uma inércia geral.

O JORNALISMO ESTÁ MORTO?

O futuro é incerto e não sabido. Se eu quiser negar a mim mesmo, digo que o jornalismo, como conhecemos, morreu. Mas ainda acredito que, entre os profissionais da imprensa, há sobreviventes imensamente inconformados e capazes de manter uma certa lembrança daquele jornalismo. De vez em quando se encontram pessoas que ainda o exercem. Há profissionais mesmo de gerações mais recentes que tiveram a sorte de viver uma cadeia de formação do jornalista que se extinguiu. Então, minha impressão é de que aquele jornalismo, morto exatamente não está, mas está assim em um processo muito avançado de extinção. É difícil imaginar uma saída para isso, porque os hábitos negativos da imprensa brasileira como instituição, como atividade empresarial, se mantêm. Esse é o grande impedimento para que se faça um jornalismo mais próximo do que é o jornalismo. Ou ao menos do que deveria ser. Esse processo de tornar o desimportante em algo importante está na essência da reverberação da informação ruim. Essa informação deformada, ou essa desinformação está cumprindo na mídia digital o papel que o sensacionalismo, particularmente o sensacionalismo policial, cumpriu na imprensa convencional. A ausência desse sensacionalismo, que não se transferiu para a internet, se deve ao fato de que o lugar dele foi suprido por essa irresponsabilidade, pelas fake news, pelos comentários levianos. E ainda temos as redes sociais. Não sigo nenhumas delas. Acho quase impossível alguém considerar que essas mídias passam perto de ser jornalismo. As redes sociais são manifestações de um público desejoso de incluir sua voz na opinião pública, e não mais do que isso. Essas pessoas se veem diante da oportunidade de usar sua própria voz e expô-la da maneira como quiserem, o que já por definição não é jornalismo. Essa liberdade de se fazer o que bem se quer não é jornalismo, Jornalismo tem compromissos rigorosos para quem se submete a eles exatamente por querer fazer jornalismo.

NADA DE NOVO NO FRONT

Não sei dizer por onde o bom jornalismo sobreviverá. Há quem diga que estamos vivendo uma fase de inovação em termos de jornalismo com a mídia digital. Eu acho exatamente o oposto. Estamos vivendo um processo de destruição inclusive pela mídia digital. Destruição do jornalismo e da comunicação. E a tendência é que, no velho processo dialético, isso venha lá adiante a provocar uma sucessão de tentativas criadoras, ou pretensamente criadoras de novas formas de comunicação, coisas mais desligadas do que se fez até agora. Isso é bastante possível. Vai aparecer quem crie algo interessante como resposta ao que está se fazendo hoje no jornalismo. Há uma queda, menos intensa em certa área da Ásia e da Europa, mas bastante intensa nos EUA de interesse por informação propriamente dita. Então, há também um problema social envolvido nisso, há uma descultura em curso. Aqui no Brasil, esse processo é muito perceptível mesmo nas áreas que não exigem certa sofisticação intelectual e cultural, como música popular. Antigamente tinha três ou quatro músicas disputando a primazia da audiência no país inteiro. Hoje em dia, não tem nenhuma.


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