Qual deve ser o comportamento da imprensa no governo Bolsonaro, por Janio de Freitas

Restrições à imprensa no dia de posse de Bolsonaro

Um dos mais respeitados jornalistas do país, Janio de Freitas escreve hoje em sua coluna na Folha sobre a importância do papel da imprensa no governo Bolsonaro.

Janio defende que a imprensa (e inclui aí rádio, TV e revistas, mas não a alternativa em blogs e redes) deve servir de contraponto ao governo.

O problema, em boa parte salientado por ele no artigo, é saber se a imprensa tem condição ou quer cumprir esse papel.

A verdade é que a mídia corporativa das famílias proprietárias busca mais uma aproximação com o governo (mais propriamente com as verbas publicitárias dele) do que com um comportamento independente e crítico.

Isso se dá não apenas pela necessidade das verbas mas porque as famílias concordam com o cerne ultraliberal no plano econômico do governo Bolsonaro, com o fim da CLT e do controle sobre o agronegócio.

A crítica visa apenas o lado bufão de Bolsonaro, o animador de auditório com sua caça aos comunistas e à ideologia nas escolas com o kit gay e as mamadeiras de piroca.

Exceções à regra, como a reportagem de Patrícia Campos Mello na Folha que denunciou o escândalo das fake news em favor de Bolsonaro em centenas de milhões de disparos pelo WhatsApp, tiveram vida efêmera e pouco alcance, face ao comportamento do Mercado e da Justiça cooptada por aumento de 16% em seus salários milionários.

Eis o artigo de Janio de Freitas:

Poder e dever na imprensa

Tanto quanto dependerá de Jair Bolsonaro e sua trupe ideológica, o Brasil e seus anos vindouros passam a depender da imprensa. Em vista do que o novo Congresso prenuncia e do visto nas altas instâncias da Justiça, quando seria necessário proteger direitos e a própria Constituição, impõe-se a evidência: as instituições oficiais não estão em condições de defender as conquistas democráticas dos últimos três decênios.

A responsabilidade pode ser excessiva para uma imprensa que não supera a vacilação, põe-se como terreno desnivelado de embates entre o interesse público e o interesse privado e, como novidade, já está ameaçada por Bolsonaro.

A rigor, a missão nada excederia, porque já integra a concepção de jornalismo consagrada no século passado. O problema é que essa concepção encontra dificuldades aqui. Tanto no poder econômico, que abomina a liberdade de imprensa, como em vícios remanescentes em parte da própria imprensa. Entre eles, o conflito vivido entre ética e conveniência por inúmeros jornalistas.

A complacência da imprensa com o governo Collor não foi posta em questão, mas foi muito grande a sua responsabilidade pelo desastre.

O plano econômico então imposto foi essencialmente inconstitucional, além de sua violência, e a corrupção regida por PC Farias era o tema do dia e da noite no poder econômico. Mas a imprensa, em geral, calou o quanto pôde.

A administração caótica juntou-se aos desmandos para induzir um atraso de anos incalculáveis ao país. Não é esse o único exemplo da complacência culposa, muito ao contrário. Mas não absorver sua lição, para repelir toda complacência, será condenar a priori a democracia e o país ao desastre.

A defesa dos direitos, da liberdade e demais fundamentos da Constituição exige ser proporcional à ameaça e ao ataque que sofram. Nada menos e, se necessário, mais. Fora disso, é conivência. Essa é decisão de comando empresarial, sim, mas não só.

Os jornalistas brasileiros precisamos rever muitas condutas. Chega das compensações, por exemplo, para um falso equilíbrio de apoio e de crítica. Para compensar a crítica aos discursos inversos de Bolsonaro em sua posse, foi lugar-comum o ataque aos partidos de esquerda por não irem às solenidades ouvir os discursos criticados.

Até por caráter, se a razão política não bastava, os políticos de esquerda não tinham mesmo que prestigiar a posse de quem disse que vai exterminá-los, seja por "acabar com os petralhas", seja mandando os opositores "para a cadeia ou para fora".

Ainda no jornalismo profissional, são em número excessivo os mais realistas do que os reis. Sua "cautela" chega a fazer mais mal do que bem aos jornais e respectivas empresas. O boicote a comentaristas e repórteres, por motivos "ideológicos" ou políticos, é outra prática de chefias que se volta contra o jornal. E quem quiser pegue aí as carapuças, à espera de mais.

Eram 1.500 jornalistas na cobertura da posse de Bolsonaro. Entre serem revistados ao menos duas vezes, obrigados a se apresentar 7 horas antes da posse, serem confinados em cercadinhos sem cadeira, sem alimento, sem direito de ter maçã, iogurte ou garrafa de água; com restrição de acesso a banheiro e bebedouro, o planejado para os jornalistas foi humilhação generalizada.

Nem por isso a dignidade da profissão mereceu mais do que o aborrecimento pessoal. Se respeitada, com a reação proporcional levando à retirada geral, a ausência de cobertura reverteria para Bolsonaro a lição que seu general planejador quis para os repórteres. Mas só uns poucos jornalistas estrangeiros se retiraram.

Depender da imprensa (termo em que incluo também TV, rádio e revistas) é arriscado. Sempre encantada com a imprensa americana, porém, a brasileira tem agora um exemplo diário a considerar: a reação proporcional do Washington Post, do New York Times, da CNN e de outros aos desatinos de Donald Trump. Salvaram a liberdade de imprensa nos EUA e a si mesmos.

A imprensa brasileira talvez esteja condenada a algo parecido: o ódio à imprensa na trupe de Bolsonaro, militar e paisano, não quererá perder a oportunidade. Não é hipótese. É certeza.



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