Duas Festas: Meu primeiro conto publicado e o filme Festa, de Ugo Giorgetti, na íntegra

Meu primeiro conto publicado, Uma Festa, e para emendar uma festa na outra repito a publicação do filme Festa, de Ugo Giorgetti, na íntegra.

UMA FESTA

Quando eu cheguei, ela dançava. Parecia feliz e rodava como se eu não existisse. Eu olhava pra ela. Havia uma festa. Tinha de me comportar. O terror da circunstância. Nada a falar de ruim pra ninguém. Tudo bem? Tudo. Nada além. Claro, e um sorrisinho entre os dentes dos outros. Sentei-me. Alguém ao meu lado perguntou sobre planos. Nada de planos enquanto durar o verão, pensei. Cabo Frio, respondi. Era como se eu não existisse. Ela rodava. Vestido vermelho descrevendo círculos de fogo. Havia uma festa. Só mentiras na velha vitrola. É, eu estava nela. Circunstância. Nada a temer. Não fugir. Eu também gosto muito, respondi. Tudo seco e cheirando a bebida numa ânsia que dava ressaca. Eu estava com um sapato novo e ele me apertava. Isso não importava a ninguém. Era como se eu não.  Sim, aceito beber alguma coisa forte, disse. Ela rodava. Serve uísque, completei. A dona da casa já ia longe. A sala é grande. Uma festa. Mentiras na velha vitrola. O que estou fazendo aqui? O que você disse?, perguntou o do lado. A sala é grande, respondi. A casa é muito bonita, falou. Será que ela reparou na minha chegada? Minha cara devia estar bem engraçada. Dançando. Quando eu cheguei, ela estava dançando. Sei que já me viu. Será? Você não gosta de dançar? Ao menos me olhou, isto eu sei. Não, não gosto de dançar, respondi. Sim, até dançaria com ela, por que não?, pensei. Serve uísque?, perguntou a dona da casa. Claro, claro, respondi. Fico me imaginando do outro lado olhando minha cara. Não sei nem segurar corretamente um copo de uísque. Queria ver minha cara olhando pra ela dançando. Olhar do outro lado os meus sapatos novos. Apertados, tive de colocar meias. Devo estar engraçado pra quem está do lado dela, pensei. Como será que ela está me vendo? Será que ela me viu? E muita gente tem casa lá. Era como se eu não existisse. O uísque acabou, e agora? Sim, respondi, muita gente tem casa lá. Tenho que embromar com esse copo. O que fazer? Não deveria ter vindo, pensei. Numa ânsia que dava ressaca. Ela. Vê-la dançando era não dançar com ela. A dimensão disso? O impossível.

Levantei e fui até a varanda. Um casal conversava lá. Meu Deus, gente em todo lugar! Se alguém estiver reparando meu comportamento? Se, realmente, alguém do outro lado estiver me observando? Nada a temer, pensei. Que se danem! Risinhos do casal. Nada a temer, repeti. Não completei. O céu estava cinzento. Esta era a vista da varanda. Pensei em “Tonio Kroeger”, de Thomas Mann. Ah, se ela viesse até aqui e falasse entra, seu bobo, vem, eu te amo, pensei. Lá, a “loura Inge” não foi. Ela rodava como se eu não existisse. Nem notou que eu vim até a varanda, pensei. O vestido vermelho que ela está usando, eu não conheço, pensei. Vê-la dançando era não dançar com ela. E nós já fomos felizes, pensei. E pensar nisto foi lembrar dos sapatos apertando os pés. Viver numa letra de tango. Eu estava ridículo ali naquela varanda. Ainda me sentia incomodando o casal. O que será que eles estão pensando de mim? Era como se eu não existisse. Ela rodava. Parecia feliz. Se estivesse comigo, não estaria dançando, a vida dela seria outra. Provavelmente nem teríamos vindo à festa, pensei. O que estou fazendo aqui?, era o complemento invariável. A vida é sempre uma coisa sem outra. Se eu digo sim perco o não. Se fico aqui não estou ali. Se ela não está dançando comigo... Por que não estamos dançando? E em que isso importa? Se eu estivesse com ela também não estaríamos dançando, e talvez ela estivesse dançando sozinha com outra pessoa, como agora. O fato é o mesmo, mudou a situação. Tenho, respondi. Acendi o cigarro da menina que estava na varanda. Obrigada, ela riu. Os sapatos apertavam. Era urgente sair da varanda. Havia uma festa. Eu me sentia ridículo. Se ela não veio até agora, não virá mais, pensei. “Tonio Kroeger” repetia-se. Era como se eu não existisse. Ela rodava. A possibilidade de algo era a impossibilidade de tudo. Virei-me. Eu ainda me sentia olhando o céu. Estava convicto. Nada a temer, repetia. Se ela não vier, não virá. Mas, por que ela não virá?

Voltei para a sala. Sentei-me no mesmo lugar. A pessoa ao meu lado perguntou-me se eu a tinha visto dançando. Dança bem, respondi. Ela está muito bonita com este vestido vermelho, prosseguiu. O terror da circunstância. Havia uma festa. Ser polido. Sim, respondi, está muito bonita. Ela parecia feliz, e rodava como se eu não existisse. Pensei no que fazer com as mãos e acendi um cigarro. Os vícios têm suas vantagens. A lembrança daquele dia ficou para sempre com Tonio Kroeger. Será que comigo vai acontecer a mesma coisa? Só mentiras na velha vitrola. Vou embora, pensei. Preciso parar de pensar, pensei. Ri. Pensar em parar de pensar!... Ela rodava. Parecia dançar só para mim, e dançar para mim era não dançar comigo. Havia uma festa. O vestido vermelho dela. Muitos mais dançavam. Sim, Cabo Frio. O que fazer com as mãos se o cigarro acabou? Não, não quero beber mais nada, respondi. Havia uma festa. Sim, aceito outro uísque, muito obrigado, falei. Parecia feliz, e rodava como se eu não existisse. A sala é grande. O que estou fazendo aqui? Descrevendo círculos de fogo. Acendi outro cigarro. Muita gente tem casa lá. “Tonio Kroeger”. A vida é sempre uma coisa sem outra. Nem notou que fui até a varanda. Os sapatos, só mesmo rindo!, apertando. Usando meias. Eu devia estar ridículo. E se alguém estivesse me olhando do outro lado? Calar a boca. Havia uma festa. Sim, está ótima, respondi. Ser polido como um cão cego. O vestido vermelho dela descrevia círculos de fogo. A “loura Inge”!, a repetição de minha impossibilidade. A possibilidade de algo era a impossibilidade de tudo. O céu estava cinzento. Esta era a vista da varanda. Tudo seco e cheirando a bebida numa ânsia que dava ressaca. Eu olhava pra ela. Ah, se ela falasse entra, seu bobo, vem, eu te amo! Será que ela havia me visto? Rodava. Nada de planos enquanto durar o verão. Sim, Cabo frio. Era como se eu não existisse. Havia uma festa. O que estava fazendo ali? Precisava sair sem que ninguém notasse. O céu estava cinzento. Meu Deus, gente em todo lugar!

Quando eu saí, ela ainda dançava. A “loura Inge”, ela parecia feliz, e rodava.

Publicado no Suplemento Literário da TRIBUNA DA IMPRENSA, 31 de julho de 1977





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