No Carnaval sem folia, 'O Poeta da Noite', conto sobre um pega de carros no Alto da Boa Vista, do meu livro A Metáfora de Drácula'

Neste Carnaval sem folia e com pandemia, mais um conto do meu livro A Metáfora de Drácula, publicado pela Livraria José Olympio Editora, em 1982 (ano que vem vai completar 40 anos!).

O conto retrata um pega de carros no Alto da Boa Vista, na zona norte do Rio. Esses pegas eram muito comuns e não sei se ainda ocorrem nos dias de hoje.

Como curiosidade o fato de que não sei dirigir e não entendo nada de carro...

O POETA DA NOITE

Todos os dias da semana são enjoados, custam a passar, e a gente que é sensível tem de fazer um esforço imenso pra não vomitar de tédio. De domingo a quinta, a merda do mundo não me interessa. Mas às sextas-feiras eu acordo inspirado, posso mesmo sentir os pássaros da noite beliscando minha espinha, iluminando meu desejo. Sexta-feira é dia de poesia, traçar no asfalto meu poema vivo.

É noite e estou aqui na pracinha do Alto, parado, observando encantado toda essa beleza branca à minha frente. Sou o Poeta da Noite e as quatro rodas Dragster tala 10 são meus cavalos esperando o momento da partida. Sinto que posso voar, é só querer. Mas não quero. Sou assim mesmo: complexo. O Poeta da Noite espera.

Meu Passat TS branco, sem frisos, brilha tanto que chega a arder nos olhos; a coluna é pintada de preto; os vidros são ray-ban, com degradée na frente; tem lanterna europeia: laranja em cima, vermelho embaixo, olho-de-gato e farol de ré; quatro bi-iodo Cibie e dois milha na frente; banco reclinado; volante e câmbio Panther. Só quem não entende nada da vida passa sem olhar pra ele.

E você pode não acreditar, mas a maioria das pessoas é assim. Elas não entendem nada de carro, da poesia que é um carro, não sabem dar valor a um motor Porsche, não sabem a potência que dois carburadores Weber 50 dão a um carro, não sabem pra que servem minhas quatro rodas Dragster, não sabem de nada.

O mundo está cheio de pessoas ignorantes e chatas e é cada vez mais difícil você encontrar alguém interessante pra conversar, alguém que goste de falar sobre poesia, que entenda que meu Passat está rebaixado duas polegadas atrás e três na frente porque o Passat sai muito de frente, uma coisa tão simples.

Aqui na pracinha do Alto, nas noites de sexta e sábado, eu fico bem. Sinto a presença de outros poetas e de pessoas que sabem dar valor a um belo poema. Sei que existem os vadios, os palhaços que vêm pra cá a fim de comer as meninas que amam a poesia; palhaços que, de longe, confundem um Passat com um Corcel II ou um Mercedes; só rindo.

 Mas, por eles, o Poeta da Noite não se interessa; eles não sabem nada de minha arte. Os outros, sim, e a todo momento um deles tenta puxar um papo sobre meu carro, sobre que tipo de poema pretendo fazer essa noite quando descer o Alto. Mas eu não digo nada. O Poeta da Noite está concentrado.

Não sou muito de conversar, o que é muito comum aos grandes poetas. Prefiro o silêncio de palavras do meu poema. Quando desço o Alto, digo tudo o que tenho a dizer; e quem puder, que entenda. E é assim com muitos poetas. Luiz Jamito, por exemplo, não é de muita conversa também, e posso vê-lo daqui, em pé junto à sua Brasília, um motor mexido, 1800, acariciando seu volante Panther igualzinho ao meu. Seria um grande poeta se não tivesse a mania de descer ouvindo Be1chior. Odeio Be1chior e sua voz nordestina; a música dele é fracassada. Só espero que Luiz Jamito se rale antes que eu chegue ao lado dele, porque vai ser muito ruim ter que misturar Belchior com meu Led Zepellin.

- Sai daí! Desencosta! A gente tem que ter cuidado senão esses palhaços acabam amassando o carro, com a mania que eles têm de pôr a mão nas coisas belas. Meu poema não é pra tocar ou acariciar, é pra sentir na espinha, é uma grande boca chupando sua medula por um canudinho.

Entro no carro e ponho minha fita do Led Zepellin, baixinho. Meu toca-fitas é um Road Star, e tenho dois alto-falantes pesados Arlen na frente, dois superpesados, também Arlen, atrás, e dois tweeter cometa. Quando desço o Alto, gosto que o Led Zepellin, a todo volume, faça a trilha musical do meu poema.

Lá adiante posso ver Rodrigo e seu Opala SS e Alex em seu Maverick V8 4-Jet. São da equipe VAP. Eles e outros da equipe conversam entre si e parecem contentes também. A noite de sexta-feira é uma grande pérola.

Eu não gosto das equipes, acho uma palhaçada, e fico triste de ver que elas estão aumentando. Ficam disputando entre si e isso tira a graça do negócio. O bom é você se sentir sozinho, como você é na realidade, completamente sozinho, tendo que fazer seu poema contra um outro também sozinho, contra a vontade dele de fazer o melhor poema, não deixando que ele o consiga, trazendo-o para o seu poema, fazendo um lindo verso sobre a derrota dele. É uma questão de arte, de prazer estético, não sei se me faço entender. O Poeta da Noite é assim.

Esse pessoal das equipes, eles pensam que são bons porque descem o Alto o dia todo, pensam que poesia se faz por osmose. Não é lendo livros de poesia todos os dias que um poeta se toma um grande poeta; não, é preciso mais, muito mais; é preciso coragem, amor. É preciso fazer o único poema possível, o seu. E as equipes estragam um pouco isso tudo, elas não entendem, ficam disputando entre si e pensam que a gente que vai sozinho não é capaz de chegar na frente. O mundo está cheio de pessoas assim, iludidas. .

São duas e meia da madrugada e a polícia ainda não saiu da praça. Enquanto os canas continuarem por aqui, nada acontecerá. Mas eu não me importo muito com isso, sei que eles vão descer, é uma questão de tempo, basta esperar. Um grande poema necessita também de muita paciência. E o Poeta da Noite é paciente.

Outros não pensam assim, e gostam de beber, queimar fumo, cheirar lança; uns palhaços. É por causa de gente desse tipo que nós, os grandes poetas, somos acusados de loucos, suicidas. Sim, porque muita gente pensa que um grande poema traçado na noite é uma forma de autodestruição; você pode não acreditar, mas muita gente pensa assim.

Mas é o que eu digo, o mundo está cheio de pessoas ignorantes e chatas, viver é difícil; os grandes poetas são sempre incompreendidos pela maioria das pessoas. Elas não entendem que nós sabemos como fazer um poema, como construí-lo; e aquilo que muitas vezes elas acham que é uma loucura, não passa de um poema bem construído. Porque um grande poema precisa de amor, coragem, paciência e também de técnica. Sem a necessária técnica, nada feito. É preciso saber mexer o carro, saber quando chamar dois, a quantos giros, só pelo som do motor; saber como tomar cada curva, como torná-la um verso limpo e irretocável; e isso elas não entendem. Meu Passat é um complemento do meu corpo, e eu cuido dele, sei do que precisa, sei o que ele quer e pode, porque ele sou eu. Não há loucura ou autodestruição nisso.

De qualquer modo, não gosto desses palhaços que não sabem ser pacientes e enchem a cara. poluem a mente. Não sou assim. Eu não preciso de artifícios externos ao poema pra conseguir prazer. O que eu acho é que eles deveriam procurar uma outra forma de ocupar a vida, deixar a pista apenas para os grandes poetas, os que sabem o que fazer com ela. Deveriam ir lá pro S ou pro Bandolim, como os outros, ver, aprender e sentir na espinha o poema dos grandes poetas. Mas eles gostam de prejudicar a classe, poemar um poste, o que se pode fazer? O Poeta da Noite traça seu poema apesar deles.

Os canas descem. Começa o movimento dos carros. Meu coração transborda com a música dos motores, minhas mãos estão geladas. Sinto que posso voar. A grande obra vai ser feita esta noite. Quem viver verá.

Meu carro está lindo, e penso em sair por último pra dar mais graça na coisa toda, pois hoje sinto que estou inspirado como nunca.

Os carros vão passando a meu lado, em fila indiana, devagar, o som altíssimo de seus toca-fitas atrapalhando meu Led Zepellin. A equipe VAP já passou e com ela, Alex e Rodrigo. Passaram também outras equipes, a FOX, a STREET, a UOP ... Luiz Jamito passa agora. Belchior em seu toca-fitas me deixa doente. Ponho meu Road Star a todo volume, mas a interferência prossegue. Passa o último carro, um fusquinha como veio da fábrica, coisa de amador à procura de emoções novas; palhaço. Entro atrás. Colo na bunda dele, fico roçando, roçando, tenho vontade de entrar, ver o que ele acha, o amador; mas me controlo e sigo devagar como todos.

Os transeuntes, as pessoas comuns, os que estão passeando sobem com seus carros por cima das calçadas, abrem-alas para o grande poema. Engraçado como eles ficam apavorados. Também, são pessoas comuns, não sabem de nada. Que falta de poesia as pessoas comuns, parecem massas de modelar.

Começamos a descer o Alto, um atrás do outro, colados, devagar; eu por último, as mãos no Panther. Quando o primeiro chegar ao Leão, começa o poema. Uma estátua que nunca teve sentido passa a ter. O Leão "existe". E ruge quando o poema começa.

Abro na contramão e vou levando, passando uns palhaços. Chamo três, chamo quatro. Sinto que posso voar, é só querer. Mas não quero. Vejo aproximar-se o Violão, uma curva monótona, muito aberta. Mas eu preciso fazer meu poema em cada traço da descida, não posso perder nada, não quero. Se não há emoção, invento uma.

À minha frente, um Fiat branco, e eu, em quarta, empurrando querendo entrar por dentro da bunda dele. O Violão é uma curva pra esquerda e estamos os dois na contramão. O Fiat vai pra mão, abre pra fazer a tangente. Eu chamo três e corto por dentro em cima da curva. Nisso, que beleza, saio um pouco de traseira na frente dele. Ele é obrigado a frear, perde giro, fica pra trás. Um outro palhaço pede bênção a um poste; um devoto. Tomara que levem até as calças dele.

Saio do Violão na frente do Fiat, chamando quatro de novo e pensando na minha posição em Águas Férreas, a curva de que mais gosto. O primeiro verso está feito e eu, então, enrosco, ganho giro e passo por uns palhaços.

Águas Férreas é a curva mais perigosa e, como se isto não fosse o bastante, vive molhada, derrapa que é uma beleza. No S também acontece isso, quando os canas, pra se divertirem um pouco, molham a pista com o Brucutu, torcendo pra ver a gente de perna aberta, capotado, como se a gente pudesse ser uma barata.

Como Águas Férreas é uma curva pra direita, o ideal é a gente vir na contramão pra pegar a tangente. Melhor ainda é a gente pegar por dentro uma curvinha fácil que tem antes, quebradinha, e sair abrindo pra contramão, pegando logo a melhor posição pra tomar Águas Férreas.

À minha frente está a Brasília 1800 de Jamito, e eu posso ouvir aquela voz horrível tentando atrapalhar meu poema: Belchior dizendo que só tem agora os carinhos do motor. Chegando à quebradinha, chamamos três. Jamito na frente. Ele pega a melhor posição, junto ao meio-fio pra abrir em contramão. Eu tento abrir em contramão na quebradinha mesmo, numa de fazer um outro verso aqui e agora. Mas ele está na frente, está, ainda está, e me fecha pra fazer a tomada, eu quase entrando na bunda dele.

Forço a barra, pois um poema é feito com amor e coragem, e corto por dentro, tentando tomar Águas Férreas pelo pior trecho. Dou duas cutucadas no freio, a uns cinco metros da curva, e chamo dois. Belchior entra me fechando pela tangente. Eu continuo forçando por dentro e enroscando cada vez mais pra ganhar giro, meter a cara na frente. Mas ele não abre e eu não consigo a ultrapassagem.

Minha cabeça parece que vai explodir. É como se o inadiável fosse adiado. Jimmy Page, na guitarra, sola e pede canal livre. Tenho que passar pela Brasília, não suporto mais as interferências de Belchior. Chamo duas pra cima e, em quarta novamente, entro na reta do S. De cara, vejo uns palhaços ralados no chão; é sinal de que o trem maldito está descendo e alguém à minha frente está traçando também seu poema com amor, coragem e arte.

Outra coisa que se precisa acabar é com isso, o trem maldito. Bicicletas não foram feitas para a poesia, são magras, iguais, monótonas. Os palhaços andam num grupinho de dez, quinze, às vezes mais, e servem apenas pra ilustrar nosso poema. Vivem com a preocupação ridícula de não cair no risquinho, que é o pequeno espaço que existe entre os blocos da pista. Se caem ali, na velocidade em que vêm, se ralam todos. Por isso eles andam no meio da pista, na faixa amarela, ou então perto do meio-fio. Cair no risquinho é ficar sem pega por muito tempo, e esta é a única emoção deles, eu acho. Jogá-los no risquinho é apenas uma das nossas; você vê, só aí, a diferença, o que estou lhe dizendo.

Mas o poema continua, e Jamito também, espalhando seu Belchior na reta do S. Ele deve estar se deliciando de ter impedido meu poema, de ter me fechado e se dado bem em Águas Férreas. Forço novamente por dentro, bato na bunda dele, tento entrar, ver o que ele acha. Ele fica nervoso, irritado, abre na contramão, joga um palhaço na calçada, e eu boto do lado dele. Fazemos a curvinha de antes do S juntos, eu já com a vantagem de estar por dentro, na melhor posição pra tomar o S. Agora, Belchior, quem faz o poema sou eu, e ele já está elaborado aqui na minha cabeça, adeus.

Chamo três, chamo dois. Na entrada do S, tangenciando, corto a Brasília, jogo Belchior pro meio-fio e o palhaço do Jamito é obrigado a frear, perder giro, ficar pra trás. Entro catando, rentinho ao meio-fio, e sinto ele me empurrando, querendo entrar em mim; palhaço. Por causa disso, saio um pouco de traseira, mas tudo bem, passo a primeira curva.

A plateia vibra. Eles balançam camisas acenando, pulam, gritam, sabem dar valor a um poeta que traça um belo poema. Chamo três, abro na contramão pra fazer a tangente da segunda curva do S. Mas o Jamito parece pensar que sou burro, quer aparecer pra plateia, e força por dentro, achando que é possível se dar bem de novo; um iludido.

Eu, fazendo a curva, fecho a porta novamente, dessa vez pra sempre, traçando meu mais perfeito verso da noite até o momento. Ouço os gritos de alegria da plateia e, pelo retrovisor, vejo Jamito rodar, catar meio-fio e capotar, deixando a Brasília de pernas pro ar, uma barata quase morta, as perninhas pra cima, na calçada. Belchior já não incomoda mais e Jimmy Page sola maravilhosamente, como que agradecendo.

O S acabou e chamo quatro novamente. Penso na plateia, no lindo verso que eles assistiram, e me emociono comigo mesmo. Vão ter muito com o que se divertir agora, uns levando Jamito pro hospital, se o palhaço se feriu, e outros pegando uma lembrança da Brasília dele: volante, câmbio, pneus, até o toca-fitas com o Belchior, pois há gosto pra tudo nesse mundo.

Agora, o caminho até o Bandolim é tranquilo demais e costuma ser, por isso mesmo, muito monótono: umas ultrapassagens tranquilas, umas fechadas perfeitas e nada mais. Mas o Poeta da Noite precisa trabalhar bem. E a noite está para um belo poema: à minha frente vejo o trem maldito, e rio. Não pode ser melhor, não pode.

Eles seguem pela faixa amarela, com toda aquela falta de poesia de que falei, coladinhos uns nos outros, e são uns dez ou doze. Vamos ver quantos sobram. O negócio é encostar na bunda do último, fazer com que eles abram, e torcer para que caiam no risquinho e deem adeus ao corpo inteiro.

Vou pra cima, encosto. O Led fazendo esporro na orelha deles. O que está na minha frente pede aos outros que abram. Eles abrem, que beleza: três palhaços se ralam todos e, durante um bom tempo, não vão dar no saco de ninguém, a não ser no de um médico, talvez, porque na velocidade em que estavam, uns noventa mais ou menos, o tombo foi bom, e o chão nunca, nunca é macio.

Vou passando pelos outros e um dos palhaços me cospe na cara. Rio e vou levando a bicicleta dele pra cima do risquinho, com a precisão de quem maneja bem qualquer verso. Ele fica maluco e entra numa de me dar uma ganchada, porque eles usam um ganchinho na ponta de uma corda, que prendem no para-choque de um ônibus ou de um caminhão para subirem o Alto; vê se pode: esse é o maior avanço de tecnologia deles; palhaços.

Ele tenta me acertar o rosto com o gancho, mas o que consegue é acertar meu Passat, o puto, e fica me xingando, embora eu não ouça o que ele está dizendo. Meu poema é contra ele e ele lamenta isso com todas as forças. Com o Led Zepellin nessa altura, vejo apenas a boca do palhaço se mexendo, se mexendo, a cara apavorada dele, o olho esbugalhado como a boca de uma privada. Fico torcendo para que ele, quando cair, encoste sua cara feia no meu carro, uma encostadinha bem de leve pra não sujar o branco que está tão bonito. Chego mais pro lado e penso "adeus, palhaço", e o palhaço cai no risquinho, deixa a bicicleta debaixo de minhas Dragster, que passam por cima dela; então, ou ouço, ptchuf, aquele barulhinho macio e rápido de um poema feito sobre uma bicicleta estúpida. Um outro palhaço, acho que por causa do susto, se rala também, e eu ouço, ptchuf, de novo. Atrás de mim vem muita gente e o trem maldito está arriscado a não chegar lá embaixo. Mas eles gostam assim, o que se pode fazer?

Nem consigo curtir bem esse último verso porque vejo, à minha frente, Alex e Rodrigo. O Bandolim é outro lugar onde muita gente se reúne para apreciar um poema e o meu não estará completo se não conseguir passar os dois ali. Enrosco tudo e sinto o acelerador querendo furar o chão. Estou no final de giro e dou chupetadas na embreagem, puxo tudo do carro. Uma beleza; assim faz quem deseja o mais belo poema. Entro no retão do Bandolim a 160, mas um 160 real, não o desses carros que anunciam 220 e dão 130, 140. De cara, vejo um palhaço no poste. Penso nos bons tempos: dançaste, coração?

Saio espalhando outros palhaços, pra lá e pra cá, e no meio da reta estamos apenas os três, eu, Alex e Rodrigo; o resto ficou pra trás, não importa. Colo na traseira deles e abro caminho, entro no meio. Fazemos uma fila tripla no retão: Alex à esquerda, na contramão, eu no meio, poetando, e Rodrigo à direita, na melhor posição pra fazer o Bandolim. O último que chamar dois faz o Bandolim primeiro eu sei, tem até um ditado sobre isso.

A curva vem chegando. Chamamos três, ao mesmo tempo. Quero ver quem chama dois por último, quem é o maior poeta, quem tem o amor e a coragem necessários para o grande poema da noite. Led faz a trilha do meu e não vou decepcioná-Io. Vou fazer um poema tão lindo que a lua vai sangrar. Alex chama nos freios, fica de fora, medroso, e seu Maverick V8 4-Jet fica pra trás; ele já vai chamar dois, o babaca.

Ficamos Rodrigo e eu. Eu gosto disto: ficou o que está na melhor posição pra fazer o Bandolim, assim tudo fica mais bonito. Eu não quero chamar dois e ele também não. Eu conheço meu carro. Ele conhece o dele. Eu quero fazer o mais belo poema. Ele também. Mas eu quero mais que ele, e ele chama dois, quase em cima da curva, perde giro. A plateia vibra. Eles devem estar pulando e gritando, com a emoção do meu poema, mas eu não olho pra eles. Fico um pouco à frente do Opala de Rodrigo. Tenho que abrir mais pra entrar no Bandolim e ele, a meu lado, não quer deixar, quer participar do meu poema; vamos lá.

Um 233 vem subindo. Que beleza, se eu pudesse escolher, não pediria nada melhor. O ônibus vem vindo. A plateia vibra mais. Agora, se eu fizer o Bandolim na posição em que estou pego o ônibus de frente ou acabo no muro. Tenho que abrir mais, de qualquer jeito, pra poder fazer a tangente e cair na mão ao fim da curva, deixando assim o ônibus passar, seguir caminho com suas exmas senhoras e exmos senhores.

Jogo meu Passat pra cima do Opala de Rodrigo e ele é obrigado a chamar nos freios pra não fazer um poema contra o poste. Chamo dois em cima da curva. Nunca cheguei tão longe, nunca ninguém chegou tão longe, e isso me deixa bem. Conheço meu carro, e ele vai escrever comigo o poema da noite.

Puxo o volante pra esquerda, o Panther gruda na mão, e entro como venho. Saio de frente e de traseira riscando no asfalto o meu poema, e um frio corre pela minha espinha, o coração dispara, tá bom, tá bom, tá bom. Vejo o meio-fio chegar como se estivesse com zoom nos olhos e, junto com o meio-fio, vêm os postes, o muro, zoom! O ônibus passa. As exmas senhoras e os exmos senhores terão alguma coisa pra contar em casa. O Poeta da Noite enche de poesia vidas monótonas. E tem gente que não reconhece isto. Não me importo.

Dou uma catada no meio-fio. Acerto o carro. Vem cá, meu bem. Vou de novo catar meio-fio, num balanço. Se bobear, acabo capotando. Acerto de novo o carro e chego ao fim de mais um verso. Chamo duas pra cima, chupeto a embreagem. A plateia não vai esquecer o poema de hoje. Pelo retrovisor, vejo Rodrigo atrás de mim uns dois metros, colando. Ele está louco pra me passar, mas a noite é minha. Eu rio.

Daqui até a Usina, falta apenas, de importante, a Nota Dez, que é a curva do posto. Não vai ter graça assim. Alivio o pé e deixo ele colar mais, ver o que ele acha. O palhaço se ilude e tenta entrar em mim; é um ingênuo. Eu rio e o Led continua fazendo a trilha. Ele força por fora, pensa que pode passar pelo Poeta da Noite. Viro o Panther um pouco pra esquerda e fecho o Opala dele. Ele tenta vir por dentro e eu viro o Panther pra direita, que moleza. Começo a achar monótono e cutuco o freio pra que ele tenha de cutucar o dele também e assim possa sentir a beleza de minha lanterna europeia. Mas a monotonia prossegue. Acho que vou deixar ele botar do lado pra ver quem consegue ficar na pista.

Um grande poema precisa de ação. E a noite, que gosta de um grande poema, coloca, à minha frente, a salvação da monotonia, uma blitz, que maravilha. Os canas, quando querem, tentam fazer seus poemas utilizando os materiais que possuem; são esforçados, a gente não pode negar. Colocaram um caminhão de choque atravessado na pista, deixando um espacinho mínimo pra gente passar. Por ali vai passar o Poeta da Noite. Eu sei que eles querem que eu reduza, diminua bastante, passe devagarinho por ali, peça até uma mãozinha a eles, pergunte se está dando pra passar, assim como se eles fossem o garagista e eu quisesse estacionar o carro numa vaga; sei que eles ficam armados de metralhadoras em cima da calçada, louquinhos pra escrever um belo poema em cima de mim; sei também que eles deixam uns guardas de trânsito logo depois do caminhão com a finalidade de encher de multas o Poeta da Noite; sei disso tudo e por isso acho ótimo que eles estejam aqui, estava ficando tudo muito monótono mesmo.

Você já imaginou se a polícia liberasse os pegas a monotonia que ia ser? Pista desimpedida, tudo organizadinho e controlado, a polícia dando até proteção pra gente, você já imaginou a monotonia? Ia ser que nem aquele bloco que sai na Quarta-Feira de Cinzas, o Chave-de-Ouro, que era uma coisa muito animada e poética e hoje parece uma procissão. Não, não dá, eles têm que fazer assim, é diversão pra eles e pra gente.

Pra começar, dou um show de luz, acendo os dois milha e os quatro bi-iodo, ilumino a cena. Eles devem estar ceguinhos com a aproximação do Poeta da Noite. Atiram pro alto. Rodrigo, que é um bom poeta e não é bobo, gruda na minha traseira pra se dar bem, ver se livra sua cara de um poema dos canas. Entro pelo pequeno espaço como venho e as metralhadoras mandam ver, fazem seu trabalho, um belo fundo pro meu Led.

Logo que passo, apago todas as luzes pra que eles não anotem a placa. Rodrigo faz a mesma coisa. Ele está grudado na minha traseira e estamos em cima da Nota Dez, último verso do poema. Chamo uma pra baixo e entro, deixando as minhas Dragster cantarem seu lindo coro. Na Usina, subo a Dr. Catrambi com o corpo leve, manobro e desço pra fazer a volta.

No posto, espero Rodrigo, que também faz sua manobra e vai voltar pra pracinha. Quero que ele suba na minha frente, quero subir namorando a traseira dele, porque os últimos aplausos têm de ser pra mim.

Ele passa e vamos os dois no maior coro pra poder atravessar a blitz. O Poeta da Noite prossegue. Os canas, preocupados com os carros que descem, nem prestam atenção na gente. Pena que não vai dar pra subir por ali, vamos ter que pegar a Estrada Velha. O Poeta da Noite gostaria de passar agora pelo Bandolim, mas não dá.

Pegamos a Estrada Velha e vamos sair junto do S. No S, reduzimos. A plateia corre ao lado dos carros; eles falam algumas coisas, pulam, gritam, acenam com camisas. Eles reconhecem o valor de um grande poeta e eu fiz um grande verso ali, quando cortei Luiz Jamito e joguei sua Brasília, com Belchior e tudo, em cima da calçada. Ali está um pouco do que ela foi.

Esse pessoal da plateia é assim, eles gostam de levar lembranças dos poemas pra casa. Gosto deles; sabem apreciar as coisas e, à sua maneira, contribuem para que um grande poema seja feito. Em caso de acidente, eles sempre limpam a pista, levam o palhaço pro hospital e seguem suas vidinhas simples. Muitas vezes têm de enfrentar a polícia, apanham e chegam a lotar três, quatro tintureiros, com suas presenças alegres. Mas isso tudo vale a pena, e eu sei que eles pensam assim; vale a pena porque veem os grandes poetas traçando um poema vivo no meio de suas noites monótonas, suas vidas iguais; vale a pena porque o Poeta da Noite trabalha pra eles, e faz um trabalho perfeito como o de hoje.

Apesar disso tudo eu nunca paro no S, apenas enrosco, enrosco mesmo, deixando no ouvido deles o som do Porsche trabalhando, para que nunca se esqueçam do som do Porsche do Poeta da Noite trabalhando.

Sempre com Rodrigo à minha frente, chegamos a Águas Férreas, e a lembrança amarga de meu fracasso ali inunda a noite. As letras na pedra olham o Poeta da Noite; devo a elas um trabalho perfeito, sei disso.

Quando chegamos ao Violão, reduzo bastante, deixo que Rodrigo abra distância, porque eu quero que ele chegue à pracinha antes de mim, quero todo mundo sabendo que o Poeta da Noite chegou na frente lá embaixo.

Chego à pracinha, vou fazendo o contorno bem devagar, e vejo que todos querem conversar comigo, todos querem me cumprimentar. Mas eu fecho os vidros do carro, não ouço nada do que eles dizem, e continuo deixando o Led Zepellin, a todo volume, falar por mim. De vez em quando, meto o pé na embreagem e enrosco pra que eles curtam também o som do meu Porsche. Me emociono com os movimentos deles, seus bracinhos e bocas tentando uma comunicação comigo; homens, mulheres, todos eles. No fim da pracinha, caio pra direita em direção à Barra, deixo neles uma saudade.

Um pouco adiante, sem que eles vejam, paro e fico esperando, escutando meu Led Zepellin baixinho novamente. Daqui, posso ouvir a música dos motores, quando eles novamente resolverem descer. Agora todos sabem da blitz, mas isso, como já disse, serve pra tomar tudo mais interessante.

Minha cabeça está leve. Sinto que posso voar, é só querer. Mas não quero. Já disse isso. Sou assim mesmo: complexo. A noite, de pernas abertas, recebeu um novo poema. E pede outro. Daqui a pouco, eles, lá na pracinha, vão fazer nova fila indiana, tudo vai recomeçar. É só uma questão de tempo. O Poeta da Noite espera.





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