'O horror, o horror...". Mas não é o Congo, o Rio nem o Brasil no caso Moïse. São os governos e os que os apoiam


A jornalista Cristina Serra publica indignada coluna na Folha [que reproduzo a seguir], cheia de razão em suas denúncias sobre o que vem ocorrendo no Rio de Janeiro e no nosso país.
 
Só não assino embaixo a frase retirada do romance de Joseph Conrad, O Coração das Trevas, usada em relação ao Rio ou ao Brasil. Nem ao Congo, acrescento eu, envolvido no trágico encontro por ser o país de origem da vítima.
 
Há horrores acontecendo aqui no Rio e no Brasil, como muito bem denunciado no texto de Cristina Serra. 
 
Mas o Brasil não é o horror, nem o Rio, nem o Congo (original no livro e no jovem assassinado no Rio, Moïse). 
 
Horror são os governos que se sucedem no Rio e no Brasil neste, depois do golpe. Os governos e os que os apoiam, que são uma minoria da população, que conseguiu chegar ao poder graças a um golpe de Estado e a um sequestro da realidade promovido pela mídia corporativa e pelas redes sociais.
 
[O que chamo de sequestro da realidade é o pior tipo de sequestro, aquele em que não é a pessoa que é retirada de sua realidade, é a realidade que é tirada da pessoa e ela passa a viver num mundo irreal. Daí se vê mulheres machistas, negros racistas, pobres defendendo privilégios de bilionários.]
 
Brasil e Rio nas mãos de milicianos são problemas que podemos corrigir agora nas próximas eleições.
 
Que o mesmo venha a acontecer também com o Congo tão rico, com um povo tão empobrecido e espoliado por sucessivos governos a serviço do capital internacional. 
 
Talvez seja o que se possa tirar de positivo desse trágico encontro Rio-Congo-Brasil, em que o jovem congolês Moïse Kabagambe foi barbaramente espancado e morto num quiosque na Barra da Tijuca.
 
O texto de Cristina Serra:

O bárbaro assassinato de Moïse Kabagambe faz a ponte entre dois fracassos civilizacionais. Aperta o nó entre Brasil e Congo, enredados há séculos na violência escravista que moldou os dois países. Atualiza a encruzilhada em que a selvageria se impõe e a humanidade se esvai no precipício.

Moïse e sua família fugiram da guerra e da fome, mas depositaram suas esperanças na cidade errada. No Rio de Janeiro, a bestialidade se alastra como metástase, por fora e por dentro do aparelho de Estado. Indícios apontam o envolvimento de milicianos e seus bate-paus no suplício do refugiado congolês.

Na sua gênese, essas máfias impunham a lei do mais forte em lugares esquecidos, inclusive (ou principalmente) pelas autoridades. O tumor foi cevado, as células cancerígenas se desprenderam do foco original e chegaram às areias do cartão postal. Já se nota um padrão: Moïse é a terceira pessoa morta por espancamento em menos de um mês na orla da Barra da Tijuca.

Um policial militar "opera" irregularmente o quiosque onde Moïse trabalhava em troca de migalhas; a família do rapaz diz ter sido intimidada por dois PMs; uma testemunha da execução conta ter pedido ajuda a dois guardas municipais, que a ignoraram. A polícia levou mais de uma semana para prender os criminosos, mesmo tempo que demorou para o quiosque do crime ser interditado.

Prefeito e governador só se manifestaram quando já pegava mal ficar calado. Autoridades federais continuam em silêncio, ainda que a tragédia tenha ocorrido na rua onde o presidente da República tem uma casa. Talvez por isso mesmo.

No livro "Coração das Trevas", de Joseph Conrad, sobre a brutalidade colonial no Congo sob domínio belga, tornou-se célebre a frase de um personagem para definir as atrocidades que presenciou contra os congoleses: "O horror, o horror...". A expressão se encaixa de maneira trágica no martírio de Moïse e no que o Rio de Janeiro e o Brasil se transformaram: "O horror, o horror...".







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