Professor da UERJ e uma teoria sobre os acontecimentos bizarros no Brasil: o 'bolsolavismo'

Numa entrevista a Bertha Maakaroun publicada no jornal O Estado de Minas, o pesquisador e professor João Cezar de Castro Rocha explica sua teoria do bolsolavismo, que teria levado à dissonância cognitiva presente em atos em que pessoas "democraticamente" pedem a volta da ditadura, por exemplo, e elegem como defensor da família um homem como Bolsonaro, que só defende a própria família.

A seguir, trechos da entrevista, que pode ser lida na íntegra no Estado de Minas.

Qual é o projeto político da extrema-direita no Brasil?

Criar as condições para instaurar um Estado totalitário e fundamentalista, do ponto de vista religioso. E a estratégia para alcançar esse propósito passa pela midiosfera digital e a produção de dissonância cognitiva coletiva. No Brasil, a dissonância cognitiva coletiva tornou-se esteio de um projeto político totalitário, o bolsolavismo, que mira a despolitização da pólis, desviando com falsas e abjetas notícias o debate dos temas que realmente importam. O Brasil é um laboratório mundial de criação metódica de realidade paralela. O que a extrema-direita tem feito no plano da política é a despolitização do debate público para avançar o projeto político totalitário – de eliminação completa do adversário ou do outro que resiste – em algumas circunstâncias, mesmo teocrático. E como isso se realiza? Produzindo a dissonância cognitiva coletiva pela instrumentalização da midiosfera extremista. Por que as redes sociais são o sal da terra para a extrema-direita? O que se trata é trazer para o campo da política o alto nível de engajamento das redes sociais. Ora, qual é a finalidade da eterna guerra cultural da extrema-direita? Não é mudar o voto do campo adversário! Estão preocupados unicamente em aumentar a presença nas redes sociais, com conteúdo abjeto, absurdo, pois essa presença pode se materializar em votos, capturando o campo dos indecisos. Quando isso acontece de forma vertiginosa? Na véspera das eleições, faltando poucos dias. A dissonância cognitiva coletiva é uma temível máquina eleitoral pela transferência para a política da alta intensidade de engajamento das redes sociais. É um engajamento em torno da desinformação e de teorias conspiratórias. Na imi- nência do segundo turno das eleições, a midiosfera extremista transformou-se em uma usina sórdida de desinformação e seus artífices incorrem nos mais variados tipos criminais como se não houvesse amanhã.

O que caracteriza o fenômeno no Brasil?

As pessoas que voluntariamente se submetem à midiosfera extremista estabelecem um pacto: somente se informar na midiosfera extremista; nunca aceitar outra fonte. Então, não há mais possibilidade objetiva de se demonstrar que há erro nessas informações, porque todas as outras fontes de informação foram desqualificadas e vedadas. Hoje, no Brasil, contamos com dezenas de milhões de brasileiros e brasileiras – e como diz Mário de Andrade, brasileiros e brasileiras como nós – que estão vivendo na ilusão, estão realmente convencidos de todo conteúdo dessa usina de desinformação, dessa máquina tóxica de produção de conteúdo com base em fake news e teorias conspiratórias, que domina a midiosfera bolsonarista. Para dizer de forma mais simples: essas pessoas estão vivendo numa dimensão paralela. Tenho uma hipótese na qual que estou trabalhando em um livro para o ano que vem. O bolsonarismo, como fenômeno de massa, enraizado em diversos setores da sociedade, é a manifestação no Brasil de uma onda transnacional que levou a extrema-direita a conquistar o poder por meio do voto em várias partes do mundo. A extrema-direita está à frente em relação ao campo progressista no que se refere à compreensão profunda da forma própria do mecanismo do universo digital. O que ela tem feito? É a inédita criação da dissonância cognitiva coletiva deliberada, por meio de um conteúdo coordenado, estrategicamente produzido para desinformar e fazer circular teorias conspiratórias e fake news. O universo digital e as redes sociais possibilitaram isso e não é casual o fato de que o principal instrumento de divulgação da extrema-direita bolsonarista sejam as redes sociais e plataformas digitais.

Se argumentos objetivos não são assimilados pelos participantes da midiosfera extremista – e o filme “Não olhe para cima” representa bem esse fenômeno –, o que pode ser feito para recuperar a perspectiva comum dos fatos na sociedade?

É possível demonstrar, objetivamente, que uma parte considerável da campanha bolsonarista é baseada em erro. Mas se permanecermos na chave do erro objetivo, nunca compreenderemos o fenômeno. Para compreendê-lo, é preciso resgatar uma distinção entre “erro” e “ilusão” que Freud propôs em ensaio de psicologia social muito importante, “O futuro de uma ilusão”. Erro está no campo do objetivo e pode ser demonstrado. Mas, diz Freud, o importante para compreender a sociedade não é o erro; o importante é a ilusão, a projeção de um desejo. Quando estou diante da ilusão, pouco importa se posso demonstrar para a pessoa iludida que, do ponto de vista objetivo, há um erro. Dessa forma, um homem que se casou três vezes, porque sistematicamente trocou a esposa mais velha por outra mais jovem; um homem que, no seu último filho homem, teria concordado com o aborto ou deixado a questão para a decisão da mulher; um homem que foi incapaz de visitar um único hospital quando nos aproximamos de 700 mil mortos; um homem que nunca, nem simbolicamente, foi à casa de uma pessoa com parentes vítimas de Covid para expressar solidariedade, um gesto de compaixão. E ainda riu, imitou de maneira satânica uma pessoa morrendo asfixiada. E ainda assim os cristãos mantêm a ideia de que ele protegerá a família cristã, a própria família que ele não soube manter. Então, não estamos no plano do erro, mas no plano da ilusão, a primeira hipótese. Trata-se da projeção de um desejo. E o desejo é de que as teorias conspiratórias e as fake news que circulam na midiosfera extremista, e que são confirmadas, por exemplo, pela Rádio Jovem Pan, sejam a verdade. 

Como é o processo de cooptação e manutenção das pessoas dentro dessa midiosfera extremista? 

A midiosfera extremista é poderosa máquina de desinformação, talvez a maior da história da humanidade. É composta por cinco elementos: as correntes de WhatsApp; o circuito integrado de canais de Youtube com capacidade tóxica de desinformação; as redes sociais; aplicativos como o Mano, cujo garoto-propaganda é Flávio Bolsonaro; e um aplicativo do Facebook, a TV Bolsonaro, O que se produz 24 horas, sete dias por semana, é conteúdo audiovisual de adesão incondicional a Bolsonaro. E há um quinto elemento, que é muito grave; como metonímia do processo, cito a Rádio Jovem Pan. Por esse veículo, todas as teorias conspiratórias e as fake news que circulam na midiosfera extremista são legitimadas, são validadas, porque são reproduzidas nesse veículo fora da midiosfera. Bolsonaro passou boa parte de seu governo atacando instituições democráticas, universidades, professores, a ciência, a imprensa e jornalistas. Líderes populistas atacam instituições e o conhecimento porque buscam, nes- se processo, se beneficiar da transferência da autoridade simbólica dessas instituições e pessoas que trabalham com a informação e o conhecimento. A transferência de autoridade está bem trabalhada por Freud no clássico “A psicologia das massas e a análise do eu”, de 1921, em que descreve a relação de submissão das massas a um líder ao qual se atribui autoridade infalível e que há nessa submissão um aspecto libidinal, ligado ao prazer. No caso de Freud, o líder é uma espécie de imã, o que implica subordinação da massa. Isso certamente é modelo perfeito para se pensar uma sociedade em que havia um centro emissor de conteúdo e uma massa receptora passiva de conteúdo. O modelo freudiano, de 1921, é interessantíssimo para pensar e antecipar de maneira notável o que ocorreu com o nazismo e o fascismo. Neste momento em que vivemos há uma diferença fundamental: hoje, o modelo de um centro irradiador para uma multidão receptora e passiva não dá mais conta da complexidade do presente. Há uma outra chave, um pouco diferente. Assim como a extrema- direita mundial, o bolsonarismo no Brasil investe numa campanha de conteúdo e microdirecionamento digital. Nesse sentido, de fato, é equívoco imaginar que as redes sociais sejam horizontais, pois as grandes plataformas fazem o papel do elemento verticalizador: determinam a lógica do algoritmo e as políticas aceitáveis de comportamento no interior das redes. Então, imaginar algo exclusivamente horizontal seria ingênuo, pois não estaríamos levando em consideração o poder que as grandes corporações e plataformas têm. Além disso há, no interior da midiosfera, a circulação sem cessar de produção audiovisual que difunde o sistema de crenças bolsolavista, com exortação incessante aos golpes de Estado e à eliminação física de adversários, entre outras teorias  conspiratórias. Os integrantes compartilham e reproduzem horizontalmente esse conteúdo estrategicamente elaborado com as suas redes.

Leia mais no link lá acima. Infelizmente, não sei se por não ter sido perguntado ou por corte na edição da entrevista, o conceito de "bolsolavismo" não foi explicado pelo professor, embora pela junção dos nomes seja possível deduzir que se trata da ligação dos fieis do bolsonarismo às ideias e métodos do falecido Olavo de Carvalho, que ironicamente morreu de complicações provocadas pela COVID, de cujo poder ele duvidava.

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