O amor tem dessas coisas (2)

Haroldo conhece o movimento: de quatro em quatro anos, quando mudam deputados e governador, chegam os novos funcionários. Os indicados, os apadrinhados. Alguns estão ali apenas para fazer número. Outros para participarem de rachadinha, nem aparecem para trabalhar, apenas assinam o ponto no final do mês. Outros estão loucos para mostrar serviço, mesmo sem ter a mínima ideia de como funciona o departamento por dentro. 

Haroldo sabe disso e pensava estar preparado para tudo, mas nada do que Haroldo sabia serviu para acalmar o impacto de Jacinara em seu coração. 

— Mas as pessoas me chamam de Nara... Narinha...

Linda. Mas, além de tudo, uma simpatia. Tratava a todos com cordialidade e, pelo menos a seus olhos, dava especial atenção a ele, "seu Haroldo" (Tenho que quebrar essa formalidade, ele pensava).

Talvez porque precisasse da anuência dele para suas demandas. Porque entre os grupos em que dividia os novos funcionários, Jacinara (Nara, Narinha) fazia parte dos que queriam mostrar serviço.

Por ele, atenderia todos os pedidos de Jacinara para chegar a Narinha, à intimidade que buscava, pois estava definitivamente apaixonado. 

Amor à primeira vista, como disse a seu Armando da padaria, onde diariamente toma sua média com pão na chapa.

— Quer dizer então que esqueceste a Selma?!... Olha que não acredito nisto. Nunca vi paixão igual em minha vida. Nem tanto sofrimento.

Automaticamente Haroldo respondeu que sim, não pensava mais em Selma, seu coração tinha nova dona.

E a nova dona conseguia fazer com que ficasse mais apaixonado a cada dia. Sempre simpática com todos e — ele pensava — especialmente com ele. Uma vez lhe trouxe até um pedaço de um bolo de chocolate que ela mesma havia preparado.

— Pensei no senhor e trouxe um pedaço.

Pensar nele foi coisa boa, mas o "senhor" foi um pisão no calo.

— Vamos fazer assim: você esquece o "senhor", me chama pelo nome que eu lhe chamo de Narinha...

A resposta dela foi o sorriso mais lindo, mais aberto até do que o de Selma. Mais sincero.

Era isso. Narinha lhe passava sinceridade, tão diferente do que se revelou Selma. 

E ele retribuía esse sorriso e essa sinceridade como podia. A tal ponto que puxou a mesa dela para sua sala, antes exclusiva. Tudo isso porque ela elogiou o ar condicionado de lá. Disse que sentia muito calor na sua seção. No outro dia, ao chegar para trabalhar descobriu que ele havia trocado sua mesa de lugar e que agora ela trabalhava na sala do chefe.

— É, parece mesmo que esta menina o fez esquecer de Selma...

Ele ficou satisfeito, quando, pela primeira vez, seu Armando parecia acreditar no que ele lhe dizia: Selma era passado, seu coração tinha nova dona: Narinha.

Por ela havia parado de ir trabalhar de terno. A princípio apenas às sextas. Mas depois, após ser elogiado por ela, passou a deixar paletó, camisa social e gravata no armário de sua sala para serem usados apenas quando necessário.

— Já a convidaste pra sair? Convide a moça para tomar um café aqui na padaria...

Mas, cadê que a timidez deixava Haroldo tomar qualquer atitude que mostrasse suas intenções a Narinha. Não tinha coragem nem mesmo para convidá-la a tomar o café sugerido por seu Armando... Habituado que estava a resolver tudo por e-mail ou mensagens no grupo de  Zap de sua Secretaria, Haroldo não conseguia encontrar as palavras para fazer um simples convite para um café. Imagine então confessar o que sentia por Narinha e perguntar se era correspondido por ela.

— Se só consegues escrever, então, escreve, homem!

Não podia mandar uma mensagem pelo grupo a Narinha. E achava muito impessoal uma declaração por WhatsApp.

Depois de muito pensar, redigiu uma carta. Não se usa mais, mas até isso lhe pareceu mais romântico, mais de acordo com seu sentimento por Narinha. Escolheu as palavras. Passou dias escrevendo, rasgando, escrevendo, rabiscando, até que chegou ao texto final, que lhe pareceu satisfatório, já que não tinha coragem de falar pessoalmente.

Na carta, confessava estar apaixonado por ela desde a primeira vez em que a viu e que essa paixão só aumentou com o tempo, ao conhecê-la melhor e ver a mulher linda, incrível, sensível, sincera que ela é.

Ficou com a carta guardada no bolso do paletó no armário da sala, até que um dia se encheu de coragem e, quando ela estava se despedindo no fim do expediente, lhe passou a carta com o pedido de que ela só a abrisse em casa.

— Isso não se faz, senhor Haroldo (voltou a chamá-lo de senhor)! Reciclagem não!

— Foi o que ela me disse esta manhã,  seu Armando: reciclagem não. Jogou a carta em cima da minha mesa e saiu. Fiquei sem entender nada. Então abri a carta que ela me devolveu e li, grifado com três traços de caneta vermelha, "Querida Selma"...

O amor tem dessas coisas.

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