A morte de Sinead O'Connor e a de todas as mães

Esta semana morreu Sinead O'Connor. Seu corpo foi achado sem vida na quarta-feira, na Inglaterra, onde estava morando. A imprensa mundial deu destaque à possível causa da morte — o desalento intenso por que passava a cantora desde o suicídio do filho Shane, aos 17 anos, em janeiro do ano passado. 

A dolorida relação de perda mãe-filho me veio à cabeça dois dias depois, na sexta, dia 28. Nesse dia fez 23 anos da morte da minha. 

Já escrevi sobre minha mãe aqui, especialmente contando da paixão dela pelo vento. Mas nunca havia escrito, nem aqui nem em ouro lugar, sobre a morte dela e a morte de todas as mães.

Quando elas morrem, o sentimento é tão intenso que mesmo nosso poeta maior, Carlos Drummond de Andrade, escreveu sobre a morte das mães um poema-lamento quase infantil:

"Por que Deus permite
que as mães vão-se embora?
Mãe não tem limite,
é tempo sem hora,
luz que não apaga
quando sopra o vento
e chuva desaba,
veludo escondido
na pele enrugada,
água pura, ar puro,
puro pensamento.
Morrer acontece
com o que é breve e passa
sem deixar vestígio.
Mãe, na sua graça,
é eternidade.
Por que Deus se lembra
- mistério profundo -
de tirá-la um dia?

Fosse eu Rei do Mundo,
baixava uma lei:
Mãe não morre nunca,
mãe ficará sempre
junto de seu filho
e ele, velho embora,
será pequenino
feito grão de milho."


No entanto, que me desculpe o poeta, mas não seria justo com as mães se elas fossem eternas. Teriam de enterrar filhos e netos, e qualquer um que tenha presenciado a dor dilacerante da mãe ao perder um filho sabe que essa eternidade seria um castigo para elas.

Eu vi o sofrimento de minha mãe quando perdeu meu irmão mais velho (que coincidentemente fazia aniversário em 28 de julho, mesmo dia em que ela morreu). Vi o sofrimento de minha sogra ao perder seu primogênito. A própria Sinead O'Connor, morta quarta-feira, dizia que se sentia “criatura noturna morta-viva”, desde a morte do filho em janeiro do ano passado. Nenhuma mãe deveria passar por isso. 

No entanto, desejamos o contrário, que ela nunca morresse, ou que morresse depois de nós (sofrendo com a nossa morte). É o que queremos egoisticamente. Que ela não morresse para que "nós" não sofrêssemos. 

Mas também porque a morte da mãe fala da nossa própria mortalidade. Enquanto a mãe vive, ainda temos dentro de nós aquela criança, aquele adolescente, aquele jovem (mesmo quando já não somos mais nada disso) que acha que morte é algo que acontece com os outros. Com a morte de nossa mãe não.

Quando a mãe nos dá à luz, ela nos traz à e a vida. Quando ela morre, ela nos traz à e a morte. "Se minha mãe morreu, eu, que sou fruto dela, também morrerei como ela" — concluímos. Por isso é tão dolorido: são duas mortes em uma.

Nothing Compares 2 U.

Muito para um pequenino grão de milho. 

*Publicada em parceria com a Revista Fórum


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