Historiador e cientista político Moniz Bandeira morre na Alemanha aos 81 anos. Leia entrevista com ele


Um dos maiores historiadores do país, crítico feroz do imperialismo estadunidense, morreu aos 81 anos em Heidelberg, na Alemanha, onde vivia.

Autor do clássico "Formação do Império Americano", Moniz Bandeira sofria de problemas cardíacos e estava internado em um hospital, mas detalhes de sua morte ainda não foram divulgados.

A seguir publico trechos de uma entrevista com o historiador, publicada na Caros Amigos no início do ano passado, que deve ser lida na íntegra aqui.



Aray Nabuco – Gostaria que o senhor descrevesse o que chama de desordem mundial. Quais elementos (políticos, econômicos, militares, enfim) que o senhor enxerga dessa desordem?
Moniz Bandeira – O desenvolvimento da tecnologia favoreceu a concentração de riqueza e de poder e as disparidades sociais aumentaram ainda mais nos países da periferia do sistema capitalista, alimentando o fundamentalismo religioso, em meio à instabilidade política, que se produziu no sistema internacional após o colapso da União Soviética e do Bloco Socialista. E os Estados Unidos não conseguiram estabelecer a “new world order” que o presidente George H. W. Bush prometeu em setembro de 1991, um mês após o presidente Boris Yeltsin dissolver a União Soviética. Que ocorre no mundo? Guerras na África, Oriente Médio, Ucrânia, turbulência na Ásia, na América Latina, o Brexit, a inquietação social na União Europeia e os Estados Unidos estão financeiramente exauridos, em franco declínio. A América Latina também não escapa. A Venezuela precipitou-se no caos. O Brasil está no limiar. A desordem política aprofunda a recessão econômica e avança no sentido da desestabilização. A superestrutura jurídica está a ruir. Ninguém mais respeita a Constituição, nem juízes, nem procuradores da República nem sequer magistrados da Corte Suprema. O atual e suposto presidente da República, ao que tudo indica, será jogado no lixo da história e conhecido como Michel Temer, o breve.
Nina Fideles – Esse cenário de desordem mundial que o senhor descreve é o que também chamam de “corporocracia”, o governo das corporações?
O domínio das corporações, anulando mais a soberania nacional, está no fundo dos tratados de livre comércio, que constavam da agenda dos Estados Unidos. O Trans-Pacific Partnership (TPP) e outro similar proposto à União Europeia tiram dos tribunais do país a capacidade para decidir sobre qualquer dissídio entre uma corporação e o governo. O Estado nacional perde a jurisdição sobre as corporações. Qualquer disputa seria adjudicada a um tribunal internacional de arbitragem, composto por três membros associados do tratado. Esses tratados contém os preceitos do Investor-State Dispute Settlement (ISDS) que ferem não apenas a soberania dos demais países signatários, mas também dos Estados Unidos, razão pela qual o TPP ainda não foi aprovado pelo Congresso e Donald Trump a ele se opôs durante a campanha para presidente. Quem o defendia era Hilary Clinton, do Partido Democrata
Nina Fideles – Poderíamos comparar a “desordem” atual (conflitos na periferia do capitalismo por interesses econômicos, resumidamente) a uma nova era de “colonização” (ou re-colonização ou renovação do velho colonialismo, a dominação política e do território)?
Ao dizimar gradualmente as economias naturais e pré-capitalistas, o capitalismo vinculou todos os povos em um sistema de vasos comunicantes e tornou as sociedades interdependentes, apesar e/ou em consequência da diversidade de seus níveis de progresso e civilização. As condições históricas são outras, não mais as mesmas do século 19. O capitalismo, como o único modo de produção capaz de envolver todo o planeta, assumiu, na sua evolução, formas diferentes. Os Estados Unidos são um império, mas não como o de Roma ou da Grã-Bretanha e França. Dominam, diretamente, Hawaí, Porto Rico, Guam, Samoa, e as Ilhas Mariana do Norte. E, das 4.999 bases militares que possuem, segundo o inventário do Pentágono, 4.249 estão no seu próprio território, 88 além-mar e 662 em 36 países e territórios estrangeiros, em todas as regiões do mundo. A dominação e exploração se processam de modo diferente, embora similares em alguns aspectos. Para quê? Essas bases militares marcam o espaço do império, com tropas de ocupação, revestidas por tratados militares assimétricos, como no caso da Otan. Os Estados Unidos têm bases militares e aéreas na Alemanha e em vários outros países da União Europeia. Porém qual o país da União Europeia que tem bases militares e aéreas nos Estados Unidos?
Aray Nabuco – A Otan é um dos braços dessa desordem mundial…
Um dos braços não, a Otan é um instrumento de dominação dos Estados Unidos. Aliás, digo isso desde o começo. Desde o primeiro secretário-geral, o general Hastings Lionel Ismay, primeiro Lord Ismay (1887–1965), então secretário-geral da Otan (1952– 1957) declarou explicitamente que a criação dessa aliança encapava o múltiplo propósito de “to keep the americans in, the russians out and the germans down”, isto é, conservar a supremacia dos Estados Unidos, conter a União Soviética e submeter a Alemanha. E é o que os Estados Unidos fazem até hoje.
Aray Nabuco – E acha que eles conseguiram esse objetivo (de manter os russos fora e a Alemanha sob controle)?
Os Estados Unidos temem que a Alemanha, o coração da Europa, se volte para a Rússia. A Rússia é um país eurasiático e essa aliança implicaria um desequilíbrio geoestratégico, ainda mais porque certamente se estenderia à China. Aray Nabuco – Mas é possível haver tal aliança? É uma tendência que sempre existiu desde Bismarck (Otto Von Bismarck, 1815-1898), que defendeu essa aliança. O empresariado alemão tem na Rússia um importante mercado. E quem está mais perdendo com as sanções impostas à Rússia é a Alemanha. Agora, na Alemanha há, assim como no Brasil e em outros países, uma parte da elite, representada sobretudo pela Kanzlerin, que mais se aproxima de Washington, dado haver nascido e crescido na Alemanha Oriental, sob o regime stalinista implantado pela União Soviética, após Segunda Guerra Mundial.
Nina Fideles – O senhor cita o terror, a guerra ao terror, e essa guerra psicológica da mídia, quer dizer, colocar medo nas pessoas se tornou um instrumento da dominação atual?
Sim, disseminar o medo é uma das formas de dominação.
Nina Fideles – Mas tornou-se política de Estado? Quero dizer, os EUA financiaram o terror da Al-Qaeda, por exemplo, e continuam repetindo isso na Síria com o Estado Islâmico.
Da mesma forma que a Alemanha nazista durante os anos 1930, os Estados Unidos encontraram no militarismo, sobretudo com a Segunda Guerra Mundial, um meio de permitir ao Estado sustentar a prosperidade das empresas privadas e reduzir o número de desempregados, consignando-lhes a encomenda de armamentos e outros grandes projetos militares. Daí que, após o esbarrondamento da União Soviética, o Pentágono, à frente do complexo industrial-militar, tratou de elaborar e dimensionar novas ameaças, entre as quais o terrorismo, e pretextos para intervenções militares, dilatação da Otan, dado que não mais havia outro Estado com capacidade de desafiar os Estados Unidos e pôr em risco o sistema econômico capitalista. O terrorismo, porém, sempre ocorrera ao longo da história de modo geral, um ato político, de natureza instrumental, um método de guerra e/ou um crime político, ora praticado tanto por organizações revolucionárias ou contrarrevolucionárias, pelos radicais de esquerda ou de direita, ou fundamentalistas religiosos e grupos étnicos, quanto pelos serviços de inteligência de quase todos os Estados, nem sempre com objetivo militar, em tempo de guerra. A CIA executou exaustivamente atentados terroristas contra Cuba, também covert actions no Brasil, a fim de propiciar o clima para o golpe militar de 1964, bem como no Chile contra o governo de Salvador Allende. O terrorismo islâmico foi em larga medida fomentado pela CIA e os serviços de inteligência do Paquistão e da Arábia Saudita, desde o final dos anos 1970, não somente no Afeganistão, como também com o objetivo de desintegrar a União Soviética a partir das repúblicas da periferia asiática, onde o Islã predominava. E, atualmente, as ONGs executam, no mais das vezes, o trabalho que antes a CIA diretamente realizava.
Aray Nabuco – Retomando a “corporocracia”, e como o senhor já citou, nesse momento a Europa vive um dilema sobre os tratados transatlânticos e de serviços, que podem acabar com o estado de bem-estar social. Esse ataque é parte dessa desordem mundial?
Há um ataque ao Estado de bem-estar social, que começou desde o colapso da União Soviética. Esse ataque reflete a crise sistêmica do sistema capitalista, que se manifestou e se agravou no epicentro de sua expansão, Wall Street, com a explosão do mercado imobiliário, no primeiro semestre de 2007, quando grandes corretoras, como Merrill Lynch e Lehman Brothers, suspenderam a venda de colaterais, e em julho do mesmo ano, bancos europeus registraram prejuízos com contratos baseados em hipotecas sub-prime. A erupção da crise econômica e financeira, que abalou e ainda ameaça a Grécia, Portugal, Espanha e toda a Eurozona – dezesseis dos 27 estados-membros da União Europeia e outros nove não-membros da UE que adotam o euro –, constituiu um desdobramento, a terceira etapa da crise econômica e financeira deflagrada nos Estados Unidos, cujo déficit fiscal era de US$ 5,7 trilhões e a dívida pública atingia cerca de US$ 20 trilhões, a ultrapassar em mais de 104% o seu Produto Interno Bruto, em meados de dezembro de 2016. Os custos a longo prazo dos Estados Unidos, cujo problema fiscal é extremamente grave, tornaram-se progressivamente explosivos, a evoluir como espiral, em que o crescente pagamento dos juros tende a aumentar o déficit fiscal e a dívida pública, gerando novo aumento e assim por diante. E a elite financeira dominante intenta lançar o peso da crise, compensar a taxa média de lucros, em queda, sobre os ombros da classe trabalhadora, dos assalariados. Esse problema, inter alia, constitui um dos fatores da desordem mundial, dentro de um contexto em que os Estados Unidos trataram de impor a full spectrum dominance (dominação de espectro total), mas não têm meios de escalar as guerras e estão a defrontar-se com a Rússia e a China.

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