Ciro e Boff. Quem é o Boff, quem é o bosta

Leonardo Boff

Numa entrevista a Géssica Brandino na Folha, o teólogo, filósofo e escritor Leonardo Boff, de 88 anos, aproveitou a oportunidade da entrevista, provocada pelo eterno candidato Ciro Gomes, que o chamou de "bosta", não apenas para externar sua opinião sobre o ocorrido, mas também sobre outros assuntos da atualidade brasileira. Vou publicá-la na íntegra, sem comentários - que deixo para a inteligência do leitor, que, ao final, poderá certamente julgar quem é Boff e quem é o bosta.

Como o senhor responde às declarações do ex-candidato à Presidência Ciro Gomes durante entrevista à Folha?

Considero Ciro Gomes uma das maiores e imprescindíveis lideranças do Brasil. Ele é importante para a manutenção da democracia e dos direitos sociais. Ele ajuda a alargar os horizontes dos problemas que enfrentamos com o seu olhar próprio. O que faz e diz é dito e feito com paixão. Entretanto, a paixão necessária nem sempre é um bom conselheiro. Creio que foi o caso de sua crítica a mim chamando-me com um qualificativo que não o honra. Minha posição é dos filósofos, dentre os quais me conto: nem rir nem chorar, procurar entender. Entendo seu excesso a partir de seu caráter iracundo, embora na entrevista afirma que “tem sobriedade e modéstia”. Sigo a sentença dos mestres espirituais: "se não entender o que alguém diz a seu respeito tenha pelo menos misericórdia", virtude central do cristianismo assumida, decididamente, pelo Papa Francisco. Procuro viver essa virtude.

[Ciro questionou sua opinião sobre o mensalão e o petrolão]

Sobre o “mensalão” e o “petrolão” sempre fui crítico. Mostrei-o em meus artigos publicados no Jornal do Brasil online, onde escrevi, semanalmente, durante 18 anos. Todos eles estão no meu blog onde pode conferir (www.leonardoboff.wordpress.com). Aconselho ao ex-ministro que leia o livro que publiquei a partir da atual crise brasileira: “Brasil: concluir a refundação ou prolongar a dependência”, com 265 páginas, editado pela Editora Vozes neste ano. Leia, por favor, o capítulo “Os equívocos e erros do PT e o sonho de Lula", das páginas 89-96 e em outras passagens. Um intelectual, ciente de sua missão, não pode deixar de criticar malfeitos, venham de onde vierem. Assim o fiz em todo o tempo.

[Na entrevista Ciro o chama de bajulador]

Não me incluo entre os eventuais bajuladores de Lula. Nunca fui filiado ao PT por convicção, pois, o ofício do pensar filosófico e teológico não pode se restringir à parte, donde vem partido, mas deve procurar pensar o todo e a parte dentro do todo. Somos eu e Frei Betto (também não filiado ao PT) amigos de Lula de longa data, desde o tempo em que organizava as greves e a resistência à ditadura militar. Portanto, bem antes de ser político e Presidente. Todas as vezes que o encontrávamos em Brasília, eu e minha companheira Márcia, fazíamos-lhe críticas, por vezes tão duras por parte de Márcia que tinha que dar chutes em sua perna, por debaixo da mesa, para se moderar. Tanto ele como nós fazíamos as críticas como amigos sinceros fazem entre si. Os amigos se criticam olhos nos olhos para construir, os adversários o fazem pelas costas para destruir. E assim o entendia Lula. Somos amigos-irmãos que têm os mesmos sonhos e os mesmos propósitos fundamentais., Frei Betto era igualmente duro na crítica, não obstante a grande amizade que os unia e une.

Após a eleição de Jair Bolsonaro, Fernando Haddad e Ciro Gomes têm disputado o protagonismo na liderança da oposição ao futuro governo. Ciro tem o direito de reivindicar esse papel?

   Como não milito em nenhum partido, mas apoio a causa daqueles que pensam nos pobres e marginalizados, nos direitos das minorias políticas, e organizam políticas sociais de inclusão na sociedade. Estou convencido de que é essencial que haja uma grande frente política plural que se comprometa com os direitos citados acima. E que, tão imprescindível como essa, se constitua uma frente de valores ético-sociais utilizando ferramentas que eles não podem usar, como fraternidade, solidariedade, o direito de cada um ter um pedacinho de terra já que essa é a casa comum na qual todos devem caber, ter um teto, a renúncia a toda violência real ou simbólica, o direito de ser feliz numa sociedade na qual não seja tão difícil o amor. Sou a favor de uma espécie de colégio de líderes, vindos das várias partes de nosso país continental, para que as resistências e oposições tenham sua base em vários estados e não apenas naqueles econômica e politicamente mais relevantes.

Diante dessa disputa de protagonismo, como evitar a fragmentação da esquerda nesse cenário?

Infelizmente a fragmentação é uma característica das esquerdas, o que levou ao enfraquecimento das oposições. Creio que agora a situação é tão dramática que precisamos de uma Arca de Noé onde todos nós possamos nos abrigar, abstraindo das diferentes extrações ideológicas, para não sermos tragados pelo dilúvio da irracionalidade e das violências que poderão irromper a partir de uma liderança que tem como ídolo um torturador como Brilhante Ustra e que admira Hitler, o criador dos campos de extermínio em massa de milhões de pessoas.

O partido dos trabalhadores errou ao insistir na candidatura de Lula para a Presidência?

Não me cabe dizer se errou ou não. O PT tinha esperança de que se fizesse justiça a Lula e o Judiciário obedecesse a declaração da ONU de que a  Lula teria garantido o direito de ser candidato. Mas o arbítrio imperante não obedeceu a uma regra de tão alta instância. Vetou sua candidatura e quanto o saiba, até lhe sequestrou o direito de votar. O que demonstra ser de fato um prisioneiro político vivendo numa solitária.

Quais estratégias da esquerda precisarão ser revistas após o resultado das eleições?

Entramos numa fase, a meu juízo, de grandes desafios e tribulações, especialmente por parte da população mais vulnerável, dos homoafetivos e de outras minorias políticas, que, na verdade, são maiorias numéricas, como os negros e negras. E seguramente muitos intelectuais e artistas sofrerão perseguições e injúrias como já estão já ocorrendo. Temo uma onda de extermínio, vinda de cima, de grupos metidos com a droga e com violência organizada nas periferias de nossas cidades. Mas a situação modificada para pior, nos obrigará a todos a fazermos uma autocrítica e superar a perplexidade com a qual fomos tomados: por que chegamos a tal ponto de extremismo e de atitudes fascistas? Por que não fomos vigilantes? Onde erramos? Penso que todos os partidos têm que se reinventar sobre bases éticas e morais mais sustentáveis. Toda crise acrisola, nos faz pensar e crescer. Não deixemos que o caos seja somente caótico, mas como no universo, o caos pode ser gerador de formas mais complexas, no nosso caso, de formas mais altas de democracia e de consciência coletiva de nosso lugar no processo inevitável de planetização. Temos tudo para sermos uma grande nação nos trópicos, não imperial, mas aberta a todas as culturas, tolerante, jovial, hospitaleira, alegre. Com nossa riqueza ecológica somos destinados a ser  a mesa posta para as fomes do mundo inteiro.



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