'Um livro apenas vive enquanto é lido' — Agualusa

Concordo inteiramente com esta frase do Agualusa, que pesquei em sua coluna de hoje em O Globo, que reproduzo a seguir: Um livro apenas vive enquanto é lido.

Não adianta uma biblioteca recheada de livros, se está fechada ou não tem leitores, seja por qual motivo.

Um livro precisa que alguém o pegue, folheie, acaricie suas páginas, faça respirar o espaço entre as folhas e, no meio delas, os espaços entre os parágrafos, as frases, palavras, letras.

O livro hiberna sem sentido, até que alguém o manuseie e ele desperte cheio de entusiasmo quando o folheiam e ele sente novamente o ar e a sensação de estar vivo.

A coluna do escritor José Eduardo Agualusa:

As bibliotecas adotadas

Vivendo numa pequena ilha africana, no Norte de Moçambique, estou habituado a ser interrompido, enquanto escrevo, por gente que pretende vender-me frutas, lagostas, polvos, e todo o tipo de antiguidades. Garotos surgem no meu escritório com moedas do século XVIII e XIX, miçangas ainda mais antigas, e belíssimos fragmentos de cerâmica chinesa. Tudo isto são tesouros que o mar traz à praia. Muitos são provenientes de embarcações naufragadas. São dezenas, ao longo de séculos, junto a uma ilha que já foi um porto importante, ligando a África ao Oriente Médio, à Índia, à China e à Europa.

Mais raramente, trazem-me livros. Quem me traz livros, contudo, não tem a intenção de os vender — são para adoção. Essas pessoas, quase sempre já de certa idade, ouviram dizer que guardo muitos livros, e esperam que eu me interesse pelos deles:

— Já não irei conseguir reler todos estes livros, e na minha família ninguém os quer. Podem ficar consigo?

Aceito sempre. Aceito todos, ainda que versem sobre “A arte de construir móveis em madeira”, que é um dos títulos que me ofereceram pouco antes de me sentar para escrever estas linhas, acompanhado por outros 300 volumes.

O pai deste último doador tinha uma tipografia. Alguns dos livros que hoje passaram a integrar a minha biblioteca foram-lhe oferecidos pelos autores.

— Tenho até originais, escritos à máquina, que herdei do meu pai. Será que o senhor também aceita originais?

Aceito. Inclusive originais de autores que nunca ninguém leu, porque nunca chegaram a ser publicados. Acredito, como Jorge Luis Borges, que mesmo os piores poetas são capazes de produzir, por milagroso acaso, ou porque o escutaram de uma musa embriagada, um verso extraordinário. Leio livros péssimos à procura desse verso redentor. Eventualmente, encontro-o.

Gosto de pensar que aqui, nesta Ilha de Moçambique, quase ninguém me pede dinheiro pelos livros, mesmo as pessoas mais necessitadas, por uma questão de respeito pela palavra escrita. Estas pessoas não procuram um comprador para os seus livros. Procuram um leitor. Alguém que, lendo os seus livros, os devolva à vida — porque um livro apenas vive enquanto é lido. De forma semelhante, uma pessoa apenas existe desde que esteja em diálogo com outras. A clássica história do último homem na Terra nunca fez, para mim, nenhum sentido. O último homem na Terra já não seria um homem — seria uma assombração.

Amo os catalães por muitos motivos, mas sobretudo porque no Dia de São Jorge trocam entre si livros e rosas. Acho isso tão bonito.

Entre os 300 livros que hoje chegaram à minha biblioteca encontrei vários títulos que sempre pretendi ler, e que, por uma razão ou outra, nunca adquiri. Entre eles, a “História trágico marítima”, uma curiosa coleção de narrativas de naufrágios, da autoria de Bernardo Gomes de Brito, publicada em dois volumes, o primeiro em 1735 e o segundo em 1736. Sem surpresa, alguns destes naufrágios aconteceram muito próximo ao lugar onde me encontro neste momento.

Certos livros, somos nós que os escolhemos. Outros, mais raros, são eles que nos escolhem a nós.


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