Afinal, escritor é trabalhador?

A pergunta não é sem sentido e estão aí escritores para me socorrer. Para nós que escrevemos é claro que é. Mas, e para os outros?

O escritor frei Betto tem 73 livros editados. Num documentário sobre sua vida, Betto conta que um sobrinho disse ter descoberto por que ele escreveu tantos livros:

— É porque tio Betto não trabalha.

73 livros, e não trabalha...

As pessoas acham que só não escrevem porque trabalham, não têm tempo... Ao contrário dos escritores...

Qualquer escritor já recebeu pedidos para escrever trabalhos escolares, mensagens de e-mail, um texto de apresentação... Ou para darem uma "penteadinha" no texto que escreveram.

Sempre assim, no diminutivo: é rapidinho, é pequenininho, leva só um instantinho...

Também acham que têm uma ideia genial para um livro, que venderia horrores ou revolucionaria a literatura; ou que sua vida daria um livro. Mas sempre dizem que só não os escrevem porque não têm tempo. Ou seja, não são como o frei Betto, por exemplo, que só escreveu 73 livros "porque não trabalha"...

Bom, que tal a palavra do Prêmio Nobel Gabriel Garcia Márquez, que confessou que se vê perdido, muitas vezes, quando necessita escrever uma simples carta de agradecimento.

Todas as vezes que acontecia um destes percalços apelava com mais ansiedade aos meus desejos de ter alguém que se encarregasse da minha boa sorte: um escritor. Contudo, nunca senti essa necessidade de um modo tão intenso como um dia de há muitos anos em que cheguei à casa de Luis Alcoriza, no México, para trabalhar com ele no guião de um filme. Encontrei-o, consternado, às dez da manhã, porque a cozinheira lhe tinha pedido o favor de escrever uma carta ao diretor da Segurança Social. Alcoriza, que é um escritor excelente, com uma prática quotidiana de caixa de banco, que tinha sido o escritor mais inteligente dos primeiros guiões para Luis Buñuel e, mais tarde, para os seus próprios filmes, tinha pensado que a carta seria um assunto de meia hora. Mas encontrei-o, louco de fúria, no meio de um montão de papéis rasgados, nos quais não havia muito mais que todas as variantes concebidas da fórmula inicial: pela presente tenho o prazer de me dirigir a V. Ex.a para…

Tentei ajudá-lo, e três horas depois continuávamos a fazer rascunhos e a rasgar papel, já meio bêbedos de genebra com vermute e empanturrados de chouriços espanhóis, mas sem ter conseguido passar além das primeiras letras convencionais. Nunca esquecerei a cara de misericórdia da boa cozinheira quando voltou para vir buscar a sua carta às três da tarde e lhe dissemos sem pudor que não tínhamos conseguido escrevê-la. «Mas é muito fácil – disse -nos ela, com toda a sua humildade. – Olhe lá.» Nessa altura começou a improvisar a carta com tanta precisão e tanto domínio que Luis Alcoriza se viu em apuros para a copiar na máquina com a mesma fluidez com que ela a ditava. Naquele dia – como ainda hoje – fiquei a pensar que talvez aquela mulher, que envelhecia sem glória no limbo da cozinha, fosse o escritor secreto que me fazia falta na vida para ser um homem feliz.” [Precisa-se de um escritor]

O desrespeito ao trabalho do escritor não vem apenas aos pedidos descabidos (hoje mesmo uma conhecida me disse que lhe pediram que revisasse [de graça, evidentemente] um texto de 125 páginas!), mas até de quem deveria tratar os escritores com respeito, mesmo os desconhecidos.

Vamos pegar uma grande editora como a Companhia das Letras, por exemplo. Quem quiser submeter seu original à editora tem que esperar um dia tal, numa hora tal. E não pode se atrasar, porque em pouquíssimos minutos a cota de livros que a editora (que vive do comércio deles) admite receber (me parece que 100) se esgota e aí o escritor tem que esperar mais um ano para poder enviar o material.

Por que isso? Por que o limite de originais? Não vivem disso? Eles devem ter uma resposta e provavelmente nela deve estar a palavra "tempo"...

No meu romance Madame Flaubert, de 2013, Editora Publisher,  escrevi:

Segundo Mario Vargas Llosa, num livro dedicado a Madame Bovary [Orgia Perpétua], Flaubert trabalhou quatro anos, sete meses e onze dias, praticamente sem interrupções, na construção do romance.
Não é trabalho?

E você que me lê, o que acha: escritor é trabalhador?

Mais informações sobre meus livros, aqui.


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