Não são apenas crimes de colarinho branco que recaem sobre
alguns parlamentares do Congresso Nacional. Para além da malversação de
verbas públicas, com emendas direcionadas para aliados políticos,
orçamentos secretos e propinas de lobistas, nosso representante máximo
do Centrão – e presidente da Câmara dos Deputados –, Arthur Lira, prova
que até acusações de crimes hediondos, como o estupro, são toleradas,
sob um manto de silêncio, a depender da força do suspeito.
“Aconteceu uma coisa que eu nunca contei a ninguém, ele disse pra mim:
‘Você está atrás de macho, eu vou lhe mostrar quem é o homem’. Ele me
puxava pelo cabelo e dizia: ‘O homem aqui… você é minha mulher, você não
vai ter outro homem, você é minha, você é a mãe dos meus filhos. Você
quer me desmoralizar, vamos lá para o quarto agora que eu vou te mostrar
quem é o homem aqui, você não quer isso? Você não está querendo? Atrás
de homem pra quê? Pra fuder? Então vou lhe mostrar agora.” Foi quando o
deputado Arthur Lira a teria puxado pelo cabelo e a violentado.
A cena chocante, que teria ocorrido em 5 de novembro de 2006, foi
narrada pela ex-mulher de Lira, Jullyene Lins, à repórter Alice Maciel,
que investigava a história desde o ano passado, quando revelou
que Arthur Lira só havia reconhecido a paternidade de uma filha com
doença rara, nascida fora do casamento com Jullyene, depois que a mãe
entrou na Justiça por não ter recursos para pagar o medicamento da
menina, então com 7 anos. Àquela altura, Jullyene, que foi casada dez
anos com Lira, já havia dito à imprensa que ele a tinha espancado, com
socos e pontapés, naquele 5 de novembro, e que depois a havia ameaçado
de morte por ela ter denunciado a violência doméstica que sofria à
polícia.
Não havia, porém, falado da acusação de estupro, o que só fez agora, na reportagem publicada nesta quarta-feira, depois de estabelecida a confiança com a jornalista da Pública,
mais de um ano depois do primeiro contato. “Eu aguentei isso esse tempo
todo, eu guardei por 17 anos isso por conta dos meus filhos, por conta
da minha família, a vergonha também, a gente se sente um lixo. Eu estou
falando isso agora porque preciso tirar esse peso das minhas costas, não
é para denegrir [sic] a imagem dele”, disse Jullyene ao revelar o
alegado estupro.
Mas a repórter Alice Maciel fez mais do que trazer as acusações de
violência sexual narradas por Jullyene. Ela se debruçou sobre o processo
judicial embasado na Lei Maria da Penha, movido a partir do inquérito
policial aberto com o Boletim de Ocorrência lavrado por Jullyene na
noite das agressões, em 2006. O BO foi publicado na reportagem, assim
como o laudo de exame de corpo de delito, obtido pela repórter, que
constatou “ofensa à integridade corporal ou à saúde do paciente” com
“instrumento contundente”, oito hematomas nas regiões da lombar,
glúteos, coxas, antebraços e pernas.
O laudo do IML foi definitivo, assim como os depoimentos da mãe e do
irmão de Jullyene e de duas funcionárias da casa, confirmando a
agressão, para a delegada Fabiana Leão Ferreira indiciar Arthur Lira em
agosto de 2007: “O exame de corpo de delito foi a prova material
robusta, técnica, isenta de qualquer julgamento. Eu tinha prova
material, era inequívoca, as testemunhas falavam de forma coerente,
contavam a narrativa, os depoimentos eram verossímeis com o fato”,
reafirmou 16 anos depois à Pública.
O processo, porém, levou nove anos para ir a julgamento, o que só
ocorreu em setembro de 2015 no STF. Naquele momento, o deputado estadual
que Jullyene havia denunciado em 2006 já tinha foro privilegiado, como
deputado federal de segundo mandato. Também já era visto como homem de
prestígio nos círculos do poder. Foi inocentado por prescrição e falta
de provas, já que no decorrer do processo as testemunhas – e a própria
Jullyene – voltaram atrás em seus depoimentos. O motivo: medo. Em 2008,
Lira chegou a ser preso por coação no curso do processo, meses depois de
o elo mais frágil – a babá que ouviu os gritos, viu o estado deplorável
de Jullyene e chamou a mãe dela para socorrê-la – já ter voltado atrás
no depoimento prestado à polícia. Alice tentou falar com a babá, como
fez com peritos, policiais e testemunhas, mas foi alertada por pessoas
próximas de que ela não falaria por ter muito medo. Já a retratação de
Julyenne, abandonada por seu advogado depois que a esposa dele foi
contratada pelo gabinete de Lira, pode ser resumida em uma palavra:
medo, mais uma vez. Ao ameaçá-la para obrigá-la a retirar a denúncia, o
atual presidente da Câmara lhe teria dito: “Onde não há corpo, não há
crime”, contou à repórter da Pública.
Lira não quis comentar as denúncias. Na reportagem do ano passado, sobre
a filha doente que abandonou, ele se pronunciou: “Eu não tenho nada
para falar, sou uma pessoa normal, que segue a minha vida, trabalhando e
fazendo as minhas coisas. Sem falar que minha vida pessoal não diz
respeito a ninguém”, afirmou.
O deputado, tão cioso dos privilégios do cargo que ocupa, parece não ter
consciência de sua responsabilidade como homem público nem do impacto
social negativo que sua atitude e impunidade projetam em um país em que é
corriqueiro o abandono dos filhos pelos pais e a violência
física/sexual atinge mais de um terço das mulheres.
Tendo a decisão do STF como escudo, tenta passar a borracha na história,
sob a cumplicidade de todos os que se calam agora diante dos documentos
e fatos gravíssimos revelados pela Pública. Entre
eles, deputadas e deputados de A a Z – ou do Psol ao PL – e,
inexplicavelmente, a imprensa tradicional, que não repercutiu a
reportagem mesmo se tratando de suposto crime cometido pelo presidente
da Câmara, o que seria um comportamento inadmissível por parte da mídia
em qualquer país democrático.
Meus parabéns à repórter Alice Maciel e a seu editor, Thiago Domenici, diretor da sucursal da Pública
em Brasília, que persistiram juntos, com a mesma coragem, na apuração e
revelação dessa história tão sintomática deste país de desigualdades e
privilégios e tão inspiradora para os que acreditam no jornalismo
independente de interesse público.