Podcast da Quatro Cinco Um que registra uma conversa ocorrida em outubro de 1976 entre os escritores Clarice Lispector, Marina Colasanti e Affonso Romano de Sant'Anna.
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Podcast da Quatro Cinco Um que registra uma conversa ocorrida em outubro de 1976 entre os escritores Clarice Lispector, Marina Colasanti e Affonso Romano de Sant'Anna.
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Esta semana morreu Sinead O'Connor. Seu corpo foi achado sem vida na quarta-feira, na Inglaterra, onde estava morando. A imprensa mundial deu destaque à possível causa da morte — o desalento intenso por que passava a cantora desde o suicídio do filho Shane, aos 17 anos, em janeiro do ano passado.
A dolorida relação de perda mãe-filho me veio à cabeça dois dias depois, na sexta, dia 28. Nesse dia fez 23 anos da morte da minha.
Já escrevi sobre minha mãe aqui, especialmente contando da paixão dela pelo vento. Mas nunca havia escrito, nem aqui nem em ouro lugar, sobre a morte dela e a morte de todas as mães.
Quando elas morrem, o sentimento é tão intenso
que mesmo nosso poeta maior, Carlos Drummond de Andrade, escreveu sobre a morte das mães um poema-lamento quase infantil:
"Por que Deus permite
que as mães vão-se embora?
Mãe não tem limite,
é tempo sem hora,
luz que não apaga
quando sopra o vento
e chuva desaba,
veludo escondido
na pele enrugada,
água pura, ar puro,
puro pensamento.
Morrer acontece
com o que é breve e passa
sem deixar vestígio.
Mãe, na sua graça,
é eternidade.
Por que Deus se lembra
- mistério profundo -
de tirá-la um dia?
Fosse eu Rei do Mundo,
baixava uma lei:
Mãe não morre nunca,
mãe ficará sempre
junto de seu filho
e ele, velho embora,
será pequenino
feito grão de milho."
No entanto, que me desculpe o poeta, mas não seria justo com as mães se elas
fossem eternas. Teriam de enterrar filhos e netos, e qualquer um que
tenha presenciado a dor dilacerante da mãe ao perder um filho sabe que essa
eternidade seria um castigo para elas.
Eu vi o sofrimento de minha mãe quando perdeu meu irmão mais velho (que coincidentemente fazia aniversário em 28 de julho, mesmo dia em que ela morreu). Vi o sofrimento de minha sogra ao perder seu primogênito. A própria Sinead O'Connor, morta quarta-feira, dizia que se sentia “criatura noturna morta-viva”, desde a morte do filho em janeiro do ano passado. Nenhuma mãe deveria passar por isso.
No entanto, desejamos o contrário, que ela nunca morresse, ou que morresse depois de nós (sofrendo com a nossa morte). É o que queremos egoisticamente. Que ela não morresse para que "nós" não sofrêssemos.
Mas também porque a morte da mãe fala da nossa própria mortalidade. Enquanto a mãe vive, ainda temos dentro de nós aquela criança, aquele adolescente, aquele jovem (mesmo quando já não somos mais nada disso) que acha que morte é algo que acontece com os outros. Com a morte de nossa mãe não.
Quando a mãe nos dá à luz, ela nos traz à e a vida. Quando ela morre, ela nos traz à e a morte. "Se minha mãe morreu, eu, que sou fruto dela, também morrerei como ela" — concluímos. Por isso é tão dolorido: são duas mortes em uma.
Nothing Compares 2 U.
Muito para um pequenino grão de milho.
*Publicada em parceria com a Revista Fórum
Você me pergunta, morena, se te amo, eu gostaria de dizer que
não, mas, sim, amo e não deveria, porque, morena, ai, morena, não são apenas os
celulares, os televisores, os automóveis, as geladeiras, máquinas de lavar, nós
humanos também somos vítimas da obsolescência programada, nascemos para durar
um certo período de tempo, morena, e assim, quando se chega à minha idade, mais
ou menos, morena, já passamos há muito do fio, do ápice da vida, que é ali pelos
30 anos, morena, e depois dessa idade o corpo começa a falhar, já não há mais o
mesmo desempenho, não é como a Lâmpada Centenária, que está acesa desde 1901 e
se mantém assim, na cidade de Livermore, na Califórnia, enquanto as nossas
lâmpadas, nossas baterias, as baterias de nossos celulares não duram quase
nada, porque são programadas para serem assim, perecíveis em xis tempo, como
nós, que não passamos dos 120, talvez alguns, mas a imensa maioria não chega nem
a isso, porque nosso corpo foi programado lá atrás no DNA, e as células começam
a morrer, especialmente do fígado, dos rins, e ai, morena, sem os rins e o
fígado para filtrarem as merdas todas que ingerimos em vida, como poderemos
sobreviver, morena, como posso alongar a vida do meu coração, que gera energia
a vida inteira, morena, a energia gerada pelo coração em um dia conseguiria
levar um caminhão por 30 quilômetros, e o que carregaria esse caminhão morena?,
e quantos caminhões carregamos pela vida com nosso louco coração batendo,
morena, daria para ir até a Lua, somados todos os dias em que ele bate sem
cessar, dia após dia, hora após hora, daria para levar um caminhão à Lua só com
a energia gerada por nosso coração, ainda mais, morena, quando chego perto de
você, morena, quando ouço sua voz, morena, e quando você me pergunta com esse
sorriso enviesado de quem sabe a resposta e quer apenas a confirmação se eu amo
você, morena, como não amar, morena, mesmo correndo o risco de acabar
desabastecendo o caminhão, fazendo com que ele não chegue a seu destino,
porque, morena, você acelera meu coração de uma maneira, que eu me sinto quase como
um feto, cujo coração chega a bater 150 vezes por minuto, o dobro de um adulto,
imagina, morena, estou muito longe do feto que eu fui, tão distante do menino,
do jovem, até do homem adulto que corria e jogava futebol e bebia e cheirava e
fumava tanta coisa, morena, tanta loucura que eu fiz na vida, morena, que
acabou estragando boa parte do meu corpo, morena, e hoje eu lamento que esteja
aqui nessa situação, diante de você, morena, e de sua pergunta, tendo que me esquivar
e no entanto não, querendo ao invés de esquivar me atirar, mas seria um
perigo, morena, porque estou gastando a quilometragem do caminhão que meu
coração move, e assim ele não chegará à Lua, como chegarão os caminhões dos
tipos saudáveis e que além de saudáveis não se expõem a uma paixão louca assim,
morena, como a que me movimenta em sua direção, não sei se você me entende,
morena, se percebe o perigo que eu corro e, no entanto, morena, sim, eu te amo,
morena, que se dane o caminhão para a Lua, que ele não chegue ao próximo
quarteirão, eu me arrisco, morena, vale a pena, morena, que ele não ande dez metros, mas vai valer a pena morrer assim, morena,
de amor... Sim, morena, sim!