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Kafka, os abutres e eu

Estava procurando por uma antiga coletânea de contos de Kafka, que não sabia onde havia posto. Até que achei. Meu objetivo era um conto sobre uns bárbaros que haviam invadido a cidade. 

Na minha lembrança, os moradores foram admitindo a presença dos bárbaros, convivendo com eles, por mais que fossem violentos e incontroláveis. Eu me recordava mesmo de uma cena em que um boi vivo foi oferecido a eles, que o devoraram a ponto de deixarem apenas os ossos.

Quando achei um dos livros de Kafka, olhei o índice à procura do conto, vi que estava ali mesmo, era Um Velho Manuscrito. Mas um outro conto no índice me chamou a atenção e fez gelar meu sangue, como acontece quando se tem algum mau presságio, ao ler o título: O Abutre.

Como quem quer adiar um problema, fui primeiro ao conto que me fez procurar o livro, e vi que havia me enganado. Não se tratava de bárbaros, mas de nômades. No entanto, o horror era o mesmo que havia ficado na minha lembrança. Não querendo confrontá-los, de concessão em concessão, a cidade via os nômades tomarem conta de tudo.

Fui então ao conto O Abutre. E agora explico por que ele me deu a estranha sensação. Escrevi há alguns anos um conto curto sobre um abutre. Teria eu inconscientemente plagiado Kafka, a ponto de nem me lembrar que ele tivesse um conto com esse título, que eu com certeza lera na coletânea?

Abri o conto de Kafka e vi que felizmente não o havia plagiado. Mas que aquele conto influenciou inconscientemente o meu, com certeza.

No conto de Kafka, um homem tem seu pé beliscado diariamente por um abutre. Até que um cavalheiro passa por ele e pergunta por que permite aquilo. Ele diz que não tem o que fazer. O outro diz que sim. Aqui vou para o texto de Kafka:

– Não se deixe atormentar com isto – disse o cavalheiro. – Basta um tiro e é o fim do abutre.
– Acha mesmo? – perguntei.  – E o senhor faria isto por mim?
– Com prazer – disse o cavalheiro. – Só preciso apanhar meu fuzil em casa. Pode suportar mais meia hora?
– Não estou certo disto – respondi e, por um instante, fiquei rígido de dor. Depois, acresci:
– Por favor, tente de qualquer forma.
– Muito bem – disse o senhor –, irei o mais rápido que puder.
Em silêncio, o abutre ouvira tranquilamente o nosso diálogo e deixara vagar o olhar ente mim e o cavalheiro. Naquele instante, percebi que ele compreendia tudo. O abutre voou um pouco mais distante, recuou para obter um bom impulso e, como um atleta que arremessa o dardo, enfiou profundamente o bico em minha boca.
Ao cair de costas, senti-me aliviado. Senti que no meu sangue – e este me preenchia todas as profundidades e me inundava todas as margens – o abutre, irremediavelmente, se afogava.

Agora o meu conto curto, de 2017:

Aproveitando os termais, o abutre descreve círculos no céu imensamente azul do deserto. Observa lá embaixo o homem caído. Há muito o persegue, esperando por esse momento. Todos os outros abutres do bando já haviam desistido. Mas ele não. 

O homem também não. Ao menos até aquele momento, quando caiu perto de uma árvore seca. Estão há dias sem comer ou beber e, num raio de quilômetros, não há nada para saciar a fome ou a sede. A não ser um. E outro. E os abutres têm sede. 

Por experiências anteriores, ele sabe que a maior parte do corpo do homem é água. 

Ele pousa na árvore. 

O homem não esboça reação. Está morto. 

Mais sedento que faminto, o abutre salta sobre o homem para descobrir, surpreso, que ele ainda não havia desistido, e agora segura firmemente seu pescoço pelado com uma das mãos, enquanto a outra golpeia-o com uma faca, fazendo o sangue espesso jorrar diretamente para uma boca seca e poeirenta. Porque os homens também têm sede. 

* * * * * 

Foi quando fiz a ligação entre o que me levou a buscar o conto Um Velho Manuscrito, à redescoberta do Abutre e à releitura do meu Abutre: os bárbaros (na verdade, nômades), os abutres, que estão tomando conta de nossas vidas e que alimentamos de concessões em concessões que fazemos a eles.

Será que vamos precisar dar nossas vidas, ou fingir que as doamos, para nos livrarmos deles que, de modo absurdo, kafkiano, nos invadiram como uma praga de ratos?

Acho que é tempo de reler A Peste, de Camus.

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Do jogador Raí: ' Vacina sim! Ele não! Ele nunca mais! Fora Bolsonaro! '

O jogador Raí, campeão mundial de clubes pelo São Paulo, jogador da seleção brasileira e do Paris Saint Germain, além de irmão do Dr. Sócrates, publicou artigo no Le Monde, um dos mais tradicionais jornais franceses.
 
Traçando um paralelo entre a situação atual e o romance A Peste, de Albert Camus, Raí denuncia o governo brasileiro, especialmente o presidente da República, que está destruindo nosso país. Ao artigo.
A Peste

Que me perdoem Camus, seus estudiosos e milhões de admiradores, peço licença para repetir aqui algumas de suas palavras, do clássico “A Peste”, de reivindicar tua audácia, uma ousadia à imagem das tuas, para me ajudar neste momento de súplica rebelde, deste espasmo de “combat” e de “combattant”, diante de atos desumanos e suas terríveis consequências.

Como brasileiro, como tantos outros e perante o mundo, assumo aqui que estamos habitados, sitiados, nestes tempos sombrios de nossa história, por mais de uma terrível peste. Este duplo flagelo, cujas devastações são apenas o acréscimo de nossos próprios erros coletivos, que pode contaminar muito além de nossas fronteiras.

Além da “Peste” biológica, epidemia pessimamente gerida, causadora da maior crise sanitária da história do Brasil, temos outro mal, que no longo prazo pode deixar terríveis sequelas ainda mais profundas. A peste antidiplomática que nos isola, a peste que corrói a Amazônia, o meio ambiente e persegue os que a protegem, o mal que distancia a vigilância e permite passar a boiada, aceita garimpos em reservas indígenas, que prefere troncos deitados a vê-los em pé, vivos, pragas cúmplices dos responsáveis por estes crimes. Também a peste que castra liberdades, ameaça a democracia e resgata a censura, a peste preconceituosa que promove a intolerância, a homofobia, o machismo e a violência.

Enfim, a Peste que nos destrói, destrói a razão e o bom senso, que perturba nossa essência, nossa consciência e nega a ciência. A Peste que promove o ódio é inimiga das artes e da cultura. Ela, que tem suas próprias variantes, é obra de um clã. Associada ao distanciamento, ao negacionismo, a desinformação, a mentira, acaba por reprimir, mesmo que temporariamente, nossa revolta, resistência e indignação.

Citamos Camus: “Os flagelos, na verdade, são uma coisa comum, mas é difícil acreditar neles quando se abatem sobre nós. Quando estoura uma guerra, as pessoas dizem: ‘Não vai durar muito, seria estúpido’. Sem dúvida, uma guerra é uma tolice, o que não a impede de durar. A tolice insiste sempre, e nós a compreenderíamos se não pensássemos sempre em nós”

Sim, aqui do outro lado do Atlântico, este oceano que nos separa e nos aproxima, amigo francês, vemos de tudo. Da “ocupação” de boa parte de nosso espírito, até ideias muito próximas de um nazismo medíocre, ao menos de um ideal genocida de poder, que se pretende genocida de ideias, mesmo que para isso a morte de concidadãos esteja no caminho, nem que para isso aconteça um massacre humanitário, desnecessário, com centenas de milhares de mortes evitáveis.

O mal está espalhado: meio ambiente, relações internacionais, Fundação Palmares, direitos humanos. Chegamos ao cúmulo de assistirmos um certo secretário de Cultura parafraseando em rede nacional o discurso de Joseph Goebbels, ministro de Adolf Hitler antissemita, maldita alma da pior das ideologias.

“Tinham visto morrer crianças, já que o terror, há meses, não escolhia, mas nunca lhes tinham seguido o sofrimento minuto a minuto, como faziam desde essa manhã”.

No nosso caso (que revoltaria ainda mais os personagens de Camus), morrem inocentes por falta de oxigênio, e/ou por falta de leitos.

É preciso então, mais que resistir. Contra este peste brasileira que veste um terno sombrio com seu sorriso astuto, ataca seus adversários com repressão, agressão e perseguição, resgatando “sobras legais” herdadas da ditadura, como a lei de segurança nacional. Nosso Brasil, depois de ter passado por 20 anos de torturas, assassinatos, censuras, pensávamos nunca mais sofreríamos deste mal.

Ainda Camus: “O padre dizia que a virtude da aceitação total de que falava não podia ser compreendida no sentido restrito que lhe era habitualmente atribuído, que não se tratava da banal resignação, nem mesmo da difícil humildade“. “Era por isso – e Paneloux afirmou ao seu auditório que o que iria dizer não era coisa fácil – preciso querê-la, porque Deus a queria”.

“O Brasil acima de tudo e Deus acima de todos” Este era o slogan da última campanha presidencial, esta que acompanhou a vitória do inominável. Alguns de nós já imaginávamos que por detrás destas palavras, se escondia a carne do mal coberta pela fake pele de um fake salvador da pátria, uma clara tentativa de iludir cidadãos de boa-fé, evangélicos, fiéis e crentes de Deus, já feridos e traídos em sua cidadania, querendo fazer crer que toda e qualquer atitude de seu governo segue princípios divinos.

Pois me diga, que Deus seria este que destrói e coloca a vida humana em um plano tão desprezível?

“Porque ele sabia o que essa multidão eufórica ignorava e se pode ler nos livros: o bacilo da peste não morre nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido nos móveis e na roupa, espera pacientemente nos quartos, nos porões, nos baús, nos lenços e na papelada. E sabia, também, que viria talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz”.

E me permita completar, e em meu país, perigosamente distraído.

O Brasil que queremos e que o mundo precisa, também negou o horror que se aproximava. E, portanto, há décadas os ratos já estavam aqui mostrando seus rostos e dentes, de olhos revirados, afiando suas unhas. E não nos atentamos. Será que nós, concidadãos, e sobretudo nosso parlamento, também somos negacionistas/cúmplices, ao não querer enxergar o tamanho do perigo, ao nos sujeitarmos a este poder já manchado de sangue e de crimes?

Eu sei que longo prazo, e seja qual for o país, o homem corajoso, o cientista, o resistente conseguirão juntos derrotar o mal. Aqui, não será tão simples assim, porque carregamos nas nossas costas a histórica extrema desigualdade, econômica, social e educacional que esteriliza alguns comportamentos e aniquila a vontade de ruptura.

Toda Peste causa separações profundas e dolorosas. E olhem nós aqui, já isolados, tratados como pária do mundo… mas, sobretudo, separados de nós mesmos, desviados do Brasil que viemos para ser, do nossa essência, da nossa natureza, do país do futuro e de um mundo mais humano e justo. Do país exuberante, da alegria de viver que faz sonhar, que dança, brinca, canta e encanta. Porém, ao nos rendermos ao mal, passivos, mostramos o que temos de pior. O país da miscigenação não pode ser o da negação do seu próprio destino!

“O flagelo não está à altura do homem; diz-se então que o flagelo é irreal, que é um sonho mau que vai passar. Mas nem sempre ele passa e, de sonho mau em sonho mau, são os homens que passam?”

Como fazer para se livrar deste pesadelo? Sobretudo não fiquemos anestesiados, amordaçados por esta “angústia muda”. Fora com este mal maior, fora a estupidez que desencoraja o uso de máscaras, que dificulta o combate ao vírus, que mata e deixa morrer, e ainda insiste!

Vacinemo-nos uma vez por todas! Vacinemo-nos também para expulsar de nós o mal maior, que vai muito além do agente infeccioso microscópico, que gangrena nosso “corps social”.

Porque não basta identificar o sequenciamento do vírus que nos impõe suas leis e viola nossos direitos, devemos agora encontrar o antídoto. Vacina sim! Ele não! Ele nunca mais! Fora Bolsonaro! Caso contrário, nos tornaremos a nossa própria peste.

“A partir desse momento, pode-se dizer que a peste se tornou um problema comum a todos nós”.








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